Intimidad

En aquel espacio parco
Donde la intimidad aflora
Risa y lagrima no disfrazo
En el instante que vigora
Dando vuelta en las palabras
Una danza principia
En compás tan intenso
Que siquiera se que pienso
Vienen y explotan sentimientos
De un canto combinado
Y lo que antes era poco
Siquiera cabe pedazo
Vive entero donde encuentra
Otras almas que abrazo

AL/2009

Mahler - Adagietto

Infinito

O infinito é nublado
E o acaso nem ligou
O fim de toda estória
Só o tempo debulhou
Muda o vento e a vida vai
Solta, nunca mais voltou
Céu de nuvens anuncia
Longe é tudo que ficou

AL/2010

Mark Pinkus - Sauna

Fuxico

 
Os dias iam tecidos
De vida que se pregou
A noite caiu soturna
Trazendo de um novo ardor
As chamas que se alastraram
Fez das cinzas outra estória
Da morte também se vive
Nau errante meu caminho
É só de águas
AL/2010
Bach - Preludio N°1

A ceia

Nunca vi mesa tão farta. Tinha comida que nem sei nome. Coisa estranha misturada dá um gosto bem distante de um tudo que não conheço.
Acordei foi bem cedinho como ordena a patroa e na cozinha entrei sozinha com a lua ainda acesa. Comi do pão dormido mergulhado no copo de café quente e doce. Esse gosto vem comigo lá da roça e dá saudade...
O sol enfim nasceu e o moço quitandeiro com um monte de esquisitice apareceu. Fui fazendo o que mandavam sem nenhum perguntamento. Vinha gente de bem longe comer com a família e a patroa tava doida que só vendo.
Lá na roça não tem data de festejo. Nem Natal, aniversário, o ano fica velho e fica novo mas o resto fica igual. Dia nasce e vai embora sem ao menos um sinal. Mas aqui tudinho é festa e aquele esbanjamento. E o povo ri do nada. Eu pra rir sou é difícil ! Não entendo dessas graças.
Ajudei a cozinheira, preta velha sem idade, a cortar, lavar, fritar e mexer os seus quitutes sem provar de quase nada. Foi o dia inteirinho preparando aquela ceia. Deu até pra enjoar só de ver tanta fartura. Nem que fosse comitiva, batalhão de retirantes, dava conta de acabar com esse tanto cozinhado.
Na salão mais importante tinha um troço engraçado, um pé de presente, uma árvore sem semente. Nunca vi plantada não. Enfeitaram as folhas dela com bolinhas espelhadas, algodão e lapadinhas que piscavam animadas. Em baixo tinha um presépio de bonecos arrumados com o menino Jesus deitado em berço raso. O resto era pacote de tudo que era tamanho embrulhado de papel estampado e laço de fita.
Na mesa coberta de luxo, pratos, copos e talheres luziam combinados. A toalha engomada enfeitava orgulhosa sem mexer um fio sequer. E o povo aqui da casa parecia essa gente de revista.
Na horinha ensaiada chegaram os convidados cada qual mais elegante. Um deles me deu por viva e piscou com olho arisco. Sai corada e morta de vergonha e de feitiço.
Servi a mesa umas vezes com a cara escondida. Só dava mesmo pra ver o caminho da comida.
Depois de tudo findado deitei na rede esticada defronte da janela do quartinho onde escondo meu mundo.Vi um monte de estrelas caindo pra todo lado. Uma delas caiu na rede, no meu coração cansado. Encheu ele de brilho, colou o lado quebrado. Dormi sono sonhado.
Natal assim nunca tive...
E aquela estrela preguei no pé de presente.

AL/2010

Alegria

Rio de risos
Largos traços refletidos
Claros sentimentos
Estampados de amor
Mil sorrisos
Despejados na torrente
Desaguando em mar
De pura felicidade
Preenchendo o coração
Sedento da beleza
Que o infinito conhece

 AL/2009

Villa Lobos - Suíte Floral: Alegria na horta

Sanguessuga


Sangue suga o coração
Escorre quente
Corpo crente
Em água doce
Não estanca
Circula livre
Amor e vida

AL/2010

F. Schubert - Sonata "Arpeggioni", D821

Resisto


Ante o que temi incerto
Falso, consagro o sem nexo
Ético de fundo in mundo
Caro sem valor raro
Resisto e peco
E nem sei lutar
Contra o mal certo
Verdadeiro, reprovo o nexo
Imoral com fundamento
Raro, barato e pobre

 AL/2008

 Josef Suk - Piano Trio in C minor, Op.2

Fantasia

Bailam nuvens em noite extensa
Crenças
Todas tão propensas
Caem estrelas e adormeço
Esqueço
Enroladas folhas frescas
Sonhos cheios de beleza
Certeza
Feito água presa
Aquece e sobe aos ceus

AL/2010

Villa-Lobos – Bachianas n° 6 - II. Fantasia: Allegro

O conto mentiroso

A hora vem chegando. A barriga crescida e redonda adverte que a menina esta pronta para viver o seu caminho riscado e riscando.
Olga, a mãe que nunca deu a luz, se prepara para receber a filha com a receita mal dosada de medo e felicidade.
Reuniu, nas horas condensadas de afeto, um pequeno enxoval de cores claras e peças simples cheirando a alfazema, na medida em que os dias evaporavam na cadência dos seus desejos.
Pouca idade lhe colava ao corpo amadurecido nas mãos do homem que um dia entregou-se absolvida entre o que sentia e o que ignorava. E tão bruscamente foi despertada que não teve tempo para guardar na memória seus anseios ingênuos.
Desde então habituada aos destemperos, nutriu-se de muita coragem e alguma destreza para enfrentar o restrito mundo que lhe valia.
Agora seguiria apenas ela e sua filha, ainda escondida no ventre estirado, na tentativa de delongar o tempo do cuidado e do aconchego.
Mas a pele tem tamanho e o ventre vida própria. E a menina muita fome. Então ela luta, chuta, empurra e sofre por querer o que lhe cabe.
Na sala apertada do hospital sem recursos, os gritos se misturam ao movimento convulso dos médicos e enfermeiras cheirando a éter e a cansaço.
Não há flores, palavras doces, sorrisos ou afagos. Há vida, morte, destino, e caminhos atravancados.
A mãe assustada grita de uma só vez tudo o que leva adentro. Reúne sopro e expulsa dor, sangue e a menina enrugada pelo frio que acompanha aquela sala imprópria a qualquer vida.
Essa logo explode em pranto a fome de engolir o mundo, por hora sossegada no leite ralo que escorre do seio daquela sua mãe impedida de enxergar a própria pena.
Mãe e filha se estranham como pacto para seguirem juntas. E o nome se faz carne. E a alma acolhe Maria Inês como sua.

cont...

Maria Inês adolesce na dimensão dos seus riscos largos, fortes e destemidos. Vasculha curiosa o mundo herdado e logo descobre o pobre que é. Salta etapas e toma para si o trabalho de viver.
Fala pouco enquanto cresce e encontra no mistério a arma adequada para quem é insaciável. O alimento que lhe falta na mesa, nunca lhe faltará na mente.
No acanhado quarto que divide com a mãe ausente por tanta labuta, pouca coisa compromete o espaço de brincar com seus amigos inventados. Um sapo bailarino e uma barata professora.
É o sapo que lhe mostra uma e outra vez, velhos truques para conseguir o salto mais elevado e preciso com movimentos leves e graciosos. Ela aprende sem dificuldade e exibe-se diante dos vizinhos, na rua estreita e cheia de buracos.
A barata convencida, passa rastejando metendo-se por todos os cantos, recolhendo o que lhe cabe na cabeça. Uma verdadeira enciclopédia ambulante pronta para enfrentar qualquer batalha mesmo correndo o risco de ser esmagada de repente. Maria Inês se diverte, e os admira e os protege como um tesouro raro. Fora do seu quarto, na miséria acumulada pelas horas parcas de alegria, faz poucos amigos verdadeiros.
Segue acelerada e ingressa por fim ao colégio buscando curiosa nos livros e nas letras, o mundo imaginado.
Olga, trabalhando noite e dia sem queixa, não se entrega, e até planeja momentos de intimidade com a filha que não vê crescer.
A realidade se desveste sem pudor à Maria Inês e o seu sonho vai ficando cada vez mais comprometido. Uma nuvem estranha encobre seus pensamentos, confundindo-a. E antes de se ver paralisada por uma dor que teima em crescer, ela decide lutar com a bravura que tinha escondida.
Numa tarde de domingo enquanto assistia televisão e comia restos de comida trazidos pela mãe do restaurante onde trabalhava, saltou de cabeça na primeira oportunidade que bateu à sua porta.
A vida de Maria Inês começava pra valer com um conto mentiroso.

cont...

Era um programa de calouros daqueles típicos das entediantes tardes de domingo.
O apresentador de voz sedutora e postura arrogante, entrevistava os candidatos sem nenhum escrúpulo antes da apresentação já comprometida dos mesmos. E assim seguia por horas a fio naquela exibição de talentos e vexames invocando o interesse mesquinho e as fantasias tolas dos telespectadores.
Maria Inês não escapou. Decidiu naquele mesmo instante que iria ser famosa vencendo aquele concurso.
Primeiro pensou em levar ao público, seus amigos raros, o sapo e a barata, para uma apresentação. Mas felizmente temeu por suas vidas, já tão cheia de riscos.
Então, sem pestanejar pôs-se a elaborar ela mesma sua apresentação, tentando reunir o que havia aprendido.
Começou por escrever um conto que representaria nos três minutos de que dispunha do programa.
Por dias emendou palavras gastando sem pesar folhas e folhas do seu caderno de matemática criando um personagem tão vivo que começou a duvidar da sua própria existência.
Maria Inês transformara-se em uma atriz completa, filha de um piloto e de uma jornalista que viajavam muito a trabalho deixando-a aos excessivos cuidados de uma tia solteirona emprestada.
Mais tarde pensaria em uma forma de convencer Olga a compactuar dessa vida inventada...
Quando já estava com tudo pronto e ensaiado, procurou ajuda de uma vizinha para fazer sua inscrição junto à organização do programa.
Passou muitas noites em claro enfrentando a ansiedade enquanto esperava por alguma resposta.
Somente depois de três semanas foi finalmente confirmada sua participação para a seleção dos dez melhores candidatos.
Agora teria de contar tudo a Olga e rezar para que ela concordasse em apoiar a sua loucura.
Conseguiu, quando de um golpe certeiro, lembrou à mãe de que era melhor arriscar do que seguir em conformidade. Não tinham realmente nada a perder.
Na data marcada levantaram bem cedo e depois de enganar o estômago com o que nem queriam, saíram de casa levando numa sacola velha a fantasia que Maria Inês, sem saber, usaria até o último dia da sua vida.
Tomaram três ônibus abarrotados de gente até chegarem ao estúdio de gravação.

cont...

Maria Inês fez todo o percurso sonhando o novo enquanto olhava pela janela suja, a vida que logo iria abandonar.
Chegando à recepção Olga preencheu metade do formulário com dados falsos. Esperaram horas até que lhes serviram um lanchinho e lhes ofereceram uma pequena sala onde Maria Inês pudesse ser preparada para a apresentação.
Uma senhora de voz estridente e cabelo de espantalho moderno, apareceu por fim para acompanhá-las ao palco não sem antes repetir mil e uma recomendações totalmente desnecessárias já que ninguém a escutava. O nervoso era intenso e contagiante como toda praga exterminadora.
Mas para admiração de todos, Maria Inês foi a única que ao entrar no palco parecia estar em sua própria casa, ou melhor, futura casa.
Pensou nos seus amigos, o sapo e a barata. Como estariam orgulhosos dela nesse momento!
Respondeu com firmeza todas as perguntas ridículas do apresentador e, quando esse se satisfez, deu-lhe o sinal para começar.
Maria Inês olhou tudo e todos à sua volta, repirou fundo e começou o seu conto.
Enquanto dançava e gesticulava ao som da sua própria voz, as palavras inventadas iam impregnando e riscando o palco com o seu personagem.
Ao final de três exatos minutos, o seu conto já era realidade e as pessoas ali presentes custaram a acrditar no que acabavam de ver. Até a própria Olga estava hipnotizada pela criação da filha.
O apresentador e os organizadores imediatamente começaram a tomar as providências para ter a participação da garota no programa daquela mesma tarde.
Foi um alvoroço, pois não é sempre que uma oportunidade assim aparece para “enriquecer” um programa medíocre de domingo.
As atenções foram redobradas. Paparicos e mimos despejados por todos os lados. Comidas, bebidas, chocolates, maquiagem, penteado e até fotos! Era a glória... Maria Inês sabia. Sempre soube.

cont...

Na chamada do programa foi anunciada uma atração especial. Um verdadeiro talento descoberto pelos organizadores. Uma artista completa e autêntica.
Antes fizeram Olga assinar um contrato de exclusividade em troca de uma quantia, para elas, transformadora.
Mãe e filha poderiam agora compartilhar uma vida de conforto, sucesso e felicidade. Parecia sonho. Mas era a pura realidade, que às vezes nos faz também flutuar.
Maria Inês ocupou quase metade do tempo do programa com sua inebriante apresentação não sem antes passar pelo interrogatório desconcertante do apresentador estrela decadente.
Ao final, o sucesso tinha realmente um lugar seguro. Acabava de surgir ali, uma magnífica estrela cintilante que nem os holofotes e flashes das câmeras conseguiam ofuscar.
Entrevistas e combinações se intercalaram até o começo da noite quando finalmente permitiram que mãe e filha fossem descansar. O dia seguinte seria ainda mais cansativo.
Voltaram para a sala onde antes tinham sido preparadas, abraçadas e envolvidas por uma nuvem de sonhos bons. Mãe e filha já não se estranhavam. E o pacto da dor foi rapidamente desfeito.
Foi ai que o destino apareceu para arrematar o conto com um pouco de verdade.
Um curto-circuito sem aparente importância transformou em poucos instantes, todo aquele estúdio e os que ali estavam em pura cinza. Um fogo abrasador e uma fumaça sufocante não permitiram que Maria Inês e Olga continuassem aquele conto.
Por dias ainda se ouviu nos meios de comunicação divagações sobre a tragédia que havia adiantado a morte de tantas pessoas. Mas nada causou mais revolta que o triste fim de Maria Inês.
Na realidade o que comovia e entristecia as pessoas era o fim do sonho não vivido nelas mesmas, porque Maria Inês essa sim viveu o dela o quanto durou.
Se existe qualquer coisa de bom na morte, deve ser o que ela nos faz refletir sobre a vida.
E se a morte é realmente transformação... Chapeau Maria Inês!


AL/2008

Desmame

Crescido em ventre terno
De amor amamentado
O seio fazendo o elo
Que logo será trocado
Consolo vem escondido
Alívio acompanhado
Dormir regado em lágrimas
Do que foi abandonado
O olhar em criatura
O cheiro mais apurado
Da perda nem agonia
Renasce segura e forte
A liga de cada lado

AL/2008

Kuhlau - Duo brillant, Op. 110, No. 1: Allegro non tanto

Fuga

Evade a vida
Cuidadosamente
Escolhida

E dribla a isca
Satisfeita
Viva!

AL/2009

Ravel - Le Tombeau de Couperin: II Fugue

Indizível

Naquele rio cambiante
Vi passar a calmaria
Nas velas que deslizavam
Sem rumo, sem revelia
O céu azul mirava
O vento mal dizia
Se canto, pinto ou conto
De nada valeria
Bebe ó alma e se cala
Idéia mais passageira
Devolve aquilo que roubas
Ao rio que em ti vagueia

AL/2009

Mendelssohn - Venetian Gondola Song Op 30 No 6

Inocência

Afina a pele
Doce descoberta
Desnuda a alma
E enaltece
Seu pudor

AL/2009

Yamandu Costa - Chamamé

Ensaio sobre a loucura

Em maio completei 41 anos. Fiz uma festa em casa para alguns amigos e conhecidos. Na verdade mais conhecidos que amigos. E uns tantos que eu nem conhecia.
Naquela noite eu estava realmente linda e atraente, apesar de ter a mente dispersa como de costume. Prova disso é que não lembro muito dos detalhes. Recordo apenas que as pessoas pareciam se divertir, que a comida estava boa e a música também. E que todos foram embora quase ao mesmo tempo. Depois ficou aquele imenso vazio que normalmente vem acompanhado de uma dor profunda. Para suportar tomei as sobras das bebidas e me recostei no divã em frente à janela com a vista fixa na lua minguante até adormecer. No dia seguinte acordei com a campainha tocando insistentemente. Era Graça que vinha para limpar a casa e ordenar o caos. Antes de começar, preparou-me um café forte e ajudou-me a tomar banho e escolher uma roupa adequada para ir trabalhar. Há momentos que sem Graça, fico perdida.
Meus dias costumam se arrastar nebulosos e sem muito sentido. Como um livro chato em que as palavras se perdem manchando as folhas sem emoção. Minha cabeça pesa meu mau humor e meu corpo o veste totalmente.
A dor se alarga, toma espaço, ao ponto de eu ser ela encarnada. Já não vejo alma e o que faço me abomina. Um dia grito, brinco, canto, e lembro. Noutro choro, emudeço, entorpeço e fomento.
Hoje vou vestida em cores fortes e prenderei os cabelos num coque alto esticando a pele e os olhos já borrados de rímel. Mostro a cara que invento, por não saber mais quem sou. Se for alegre causo espanto, e se vou triste sou incomodo.
Não vi Graça esta manhã. Estará escondida na esquina esperando que eu saia para poder entrar. Reconheço que a cada dia que passa tem mais medo dos meus ataques e não a culpo. Também estou apavorada com o que sai de mim. Encontrará a desordem de sempre e o espelho do banheiro riscado de lápis preto e batom carmim. Registro ali o pouco que vejo e saio com outra cara. Graça entende tudo e apaga...
Gosto de caminhar rápido zigzageando nas calçadas como se estivesse atrasada. Vou esbarrando de propósito nas pessoas e depois peço desculpas exibindo meu melhor sorriso falso. Às vezes finjo discutir com alguém no celular e aproveito para gritar nas ruas os meus tormentos. Talvez esteja mesmo ficando louca. Não sei se vivo do que sou e não sinto, ou sou o que sinto e não vivo.
São tantos os pensamentos que invadem minha mente e metralham meus sentidos... Meu corpo envelhece sem suportar a carga dos meus desejos e desfilo de dia os pesadelos que costuro na noite.

cont...

Cheguei pontual ao Teatro Municipal e em poucos instantes toda a produção já estava ao meu redor. Paparicam-me com exagero e eu aproveito. Para aturar todo um dia de ensaios e repetições vale até mesmo sucumbir às atenções mais duvidosas.
Repassamos a ária Ombra mai fù à exaustão. Fico enlouquecida quando um Maestro insiste em não respeitar um convidado e então provoco de todas as maneiras possíveis. Se preciso for, improviso uma cena e nem volto para ensaiar. E se a raiva me domina cancelo e pronto. Hoje decidi ficar em solidariedade aos pobres músicos entregues a esse Maestro onipotente. Dum mergulho solitário faziam submergir os mais raros sentimentos colados em som difuso. Cantei divagando nas palavras sem controle e fui sendo levada pela melodia a uma distância difícil de regressar. Um lugar sublime quiçá próximo ao que se espera da eternidade.
Terminamos o ensaio tarde da noite e eu, além de faminta estava muito excitada. Saí com o grupo para jantar e joguei com as palavras noite adentro. Enquanto falava, bebia e fumava sem me preocupar com as conseqüências. A propósito... Nunca cuidei da minha voz.
Um jovem violoncelista me fez chorar de rir com sua coleção interminável de piadas tolas sobre elefantes. Invejo as pessoas que sabem cavar sorrisos. Quando eu era criança dizia a todos que iria ser palhaça. Que viajaria em um grande circo voador sobrevoando todos os lugares do mundo e pousando naqueles onde a alegria por tempos não reinava. Hoje nem de criança eu gosto. Irrita-me tanta inocência.
Preciso voltar pra casa. Já não tenho idéia do que digo e minha cabeça dá voltas misturando no espaço, caras e fantasmas.
Peço um taxi e não aceito companhia. No caminho, enquanto cruzávamos a ponte tive vontade de abrir a porta, sair correndo e saltar ao infinito. Mas como algumas vezes sucede, os impulsos duram menos que o tempo necessário para que o cérebro entenda e cumpra. Um dia espero poder reverter essa ordem.
Acho que o motorista percebeu alguma coisa porque não parou de me olhar pelo retrovisor. De repente ligou o rádio e perguntou se eu gostava de música clássica. Soltei algo parecido a um resmungo e ele imediatamente desligou pedindo desculpas. Fiz de conta que não entendi e fechei os olhos. Para compensar minha hostilidade deixei-lhe uma boa gorjeta. Agradeceu confuso e quis saber se eu estava bem. Com um sorriso irônico dei-lhe as costas e boa noite ao mesmo tempo.
É impressionante como algumas pessoas totalmente desconhecidas tem essa capacidade de ver através... Desorientada acabo levantando um muro ainda mais espesso.

cont...

Subi os três lances de escada tentando não fazer muito ruído e depois de abrir com muita dificuldade os três ferrolhos da porta, entrei sem desligar o alarme. Uma sirene escandalosa ecoou e não consegui lembrar a seqüência dos três números para calá-la. Como invasores, zelador e vizinhos se amontoaram diante da minha porta golpeando e gritando pelo meu nome.
No desespero, tropecei numa cadeira e bati a cabeça na quina da mesa de jantar. Não tenho a mínima idéia do que aconteceu depois.
Acordei com Graça ao meu lado mais esquisita que nunca. Não me deixava fazer nada, e o que era pior, entre um suco e uma sopa, me dopava com um coquetel de comprimidos.
De repente saltei da cama desesperada. A estréia! O teatro, os músicos, o público! A mídia... Essa teria um prato cheio... Sensacionalismo por no mínimo um mês. E a louca sempre sou eu!
Graça se instalou em casa cuidando do meu ferimento e de mim. Seu medo parecia diminuir diante da minha demência. Sem outra saída, comecei a ludibriá-la. Fingia engolir os remédios e depois jogava tudo na privada. Também fingia dormir quando chegava o tal psiquiatra. Para que conversar com quem não te entende? Do que quer me curar? Meus devaneios são minha salvação e minha voz, mesmo descuidada, uma sólida ponte com o outro mundo. Acreditem, “quem canta seus males espanta”!
Minha dedicada acompanhante não sai mais do meu pé. Insiste em trazer livros, revistas e filmes para me ocupar, mas eu não consigo manter a mente concentrada por muito tempo nessas tolices. Se queixa que eu como pouco e sai inventando cardápios extravagantes para me seduzir. De pena, acabo engolindo uns bocados.
De vez em quando ainda canto. Canto e fujo rápido da platéia e dos holofotes. Durmo muito de dia e vagueio à noite aproveitando as ruas vazias e silenciosas cobertas pela umidade que deixa no ar um cheiro azedo de coisa consumida. Os fantasmas se multiplicam e agora sou um deles. Voltei a assustar e a viver do que invento e é.
Graça entende tudo e apaga...


AL/2009

Realidade

A realidade
Passa lentamente
Enquanto a vida pulsa
E invade
A terra árida

AL/2009

Dvořák: Cello Concerto In B Minor, Op. 104, B 191

Historieta

De um conto escondo
De segredos calo
Do que sou disfarço
E o que é entalho
De um sopro escuto
Do que sei padeço
No olhar entendo
Vivo tudo e esqueço


AL/2009

Franz Liszt - Années de Pelerinage -2°année -5.Sonetto del petrarca 104

Partido ao meio

Um lado endurecido
Pelo peso da armadura
O outro deslizando
Como água da mais pura
Um denso, outro leveza
Entre o medo e a confiança
Um frio, outro afável
Entre o laço e a distância
Andam juntos costurados
Com a linha inquieta
Desejando o fogo ardente
Que fundirá para sempre
O que é de verdade

AL/2007

Debussy: Chansons De Bilitis, L 96 - Pour L'Égyptienne

Canto triste

Esse canto tanto triste
Escutei algum dia
Vindo não sei de onde
Indo sem direção
Recolhendo as lágrimas
Que escapavam tímidas
Das janelas da alma
E deixavam no ar
Aquela sensação
Estranha...
De sozinho

AL/2007

Stravinski - Firebird

A Caçada


Levantou-se antes do sol com o corpo ainda tênue e, sem fazer muito ruído, vestiu-se desatento enquanto bebia o café requentado. Colocou na bolsa um pouco de comida e água, tomou a espingarda e saiu sem se despedir dos seus.
Montou seu velho cavalo que já o aguardava ciente do caminho a fazer e em silencio seguiram as trilhas descobertas por ambos, observando os animais que trocavam de turno à medida que o sol ia fazendo viver o dia.
Nesse momento de alvoroço, onde tantos hábitos se confrontam, o caçador tem mais chance de agarrar a sua presa. E lá vinha ela com o corpo ainda tênue, sem fazer muito ruído. Desatenta, parou para beber água no riacho parco sem perceber o caçador que a perseguia com os olhos fixos , a respiração controlada e o dedo no gatilho.
Porém quando a presa o fitou com aquele olhar inocente e assustado típico de todas as vítimas, seu coração disparou fazendo tremer a mão ora firme e nublando totalmente a visão certeira.
Baixou a arma vencido, buscou um pouco de comida e a ofereceu com distância. Trocaram novamente um olhar breve para não abrandar a desconfiança indispensável a sobrevivência de ambos. Montou seu velho cavalo e voltou para casa descobrindo novas trilhas. Deixando para traz sua presa,ainda livre.


AL/2007

Haicai


As árvores secam
E um manto de folhas
Cobre as ruas nuas

AL/2007

Casa de abelha

Das flores quero doce
Lambuzado mel refaço
Traço ligas costumeiras
Vivo breve em leve espaço
Movo asas agitadas
Teço a casa
Reino em favos
Viço e néctar
Enfeitiçado
Divina proporção
De um feito bem casado

AL/2009

Elgar - The Crown of India, Op. 66 - March Of The Mogul Emperors

Amor Tecendo

Entrelaço os cordões
Apertando cada nó
Sem saber o que pretendo
Resistindo ao tempo só
Vejo a cara nas idéias
Sinto a falta da melhor
Jogo a vida na arena
Com a fera ao redor
E o desejo voa alto
Deslumbrando o valor
Sem temer nenhuma queda
Pois coberto de amor

AL\2007

Dvorak - Sinfonia do Novo Mundo - II. Largo