O vento


E o vento soprou, soprou
Na folha da palmeira
Levantou a saia branca
Da menina festeira
Afinou o som vibrante
Com o da ave aventureira
Fez cair o chapéu novo
Da cabeça pensadeira
Sacudiu o pó do chão
Misturou na corredeira
Refrescou aquela idéia
Esquecida por besteira
Vento sopra na ribeira
Leva nuvem passageira
Leva dor que amarra a gente
Leva fogo e brincadeira
Leva até amor embora
Leva uma vida inteira
Sopra vento forte agora
Uiva feito quebradeira
Passa louco pelas ruas
Derrubando casa e feira
Chama a chuva e a trovoada
Vai embora assim do nada
Soprando...

AL/2009

Yamandu Costa - Flamengo

O abraço


Prisioneiro das palavras
Perdes tempo em arrumá-las
Temes tanto o que exala
Faz soar o que resvala
No final de nada servem...
Muito mais alcance
Tem o teu abraço

AL/2007

Yamandu - Chorando por amizade

A bruxa e o cozinheiro

Esquisita toda bruxa é, mas a essa não cabia alusão. Cara de bruxa tinha. Nariz empinado, olhos de fogo e cabelo espigado. A boca,... Escondia uma língua tão comprida que vivia enrolada. Difícil entender o tanto que ela falava. As orelhas, não vi não. Escutava é com o coração. Esdrúxula!
De casa não precisava. Vivia revolvendo a terra, voando entre as nuvens, mergulhando em águas profundas e saltando labaredas. Se metia em vida alheia inventando solução, mas como não cozinhava, não preparava uma porção...! Onde já se viu? Tinha uns dedos tão compridos que pareciam umas agulhas. Quando espetavam qualquer corpo, saia um monte de fagulha. Devia ser o tal veneno... Isso quando não arrotava velhos gases em trovoada fazendo mexer na gente vísceras e idéias bizarras. Que nojo!
Mas um dia essa bruxa tão esperta e atrapalhada, caiu da vassoura... Que cilada!
Como sempre, procurando confusão, se meteu em uma briga num seminário de assombração. Fizeram chacota dela porque não tinha um caldeirão. Ficou tão enfadada que usou feitiço novo nunca antes ensaiado transformando os presentes em ursos, macacos e serpentes. Saiu bufando descontrolada arrastando sua vassoura pelos ares e anunciou nas páginas do céu com estrelas combinadas que buscava um chefe cozinheiro para lhe ensinar todos os segredos do fogão. Mas o tempo se arrastava e não aparecia nada não...
Quando um dia mergulhava num oceano turbulento, viu passar um cozinheiro revestido de algas claras, nadando tranqüilo na correnteza. Tinha um saco escondido com algumas espécies raras debaixo de um caracol que usava na cabeça. E um olhar de azul calmante que mirava bem distante.
A bruxa ficou sem ar diante daquela estranheza! E não fossem os seus poderes, morreria afogada em sua própria natureza. Bem feito!
Usou uma voz suave para chamar a atenção, mas o lindo cozinheiro só estava interessado em sua nova criação: Sopa de ouriço com saliva de tubarão. Uma entrada exuberante para uma festa muito importante.
A bruxa tentou de tudo. Até dançou um tango com a vassoura em meio a um cardume de salmão, mas o sábio cozinheiro continuou o seu trabalho sem qualquer hesitação.
Finalmente já cansada foi dormir em terra firme ao lado de um canteiro de especiarias. Fez uma cama de arruda e camomila e esperou raiar o dia.
E não é que outra vez o cozinheiro apareceu! Parecia que o destino é quem queria brincar com aquela bruxa que de tudo já viveu.
O galante mestre-cuca escolheu umas tantas ervas enquanto assobiava uma velha canção francesa que ninguém mais se lembrava. A bruxa deslumbrada acompanhou com sua voz mais afinada e finalmente o cozinheiro cruzou sua mirada. Foi paixão, não tenho dúvida. Dessas que morde e mata. E traçando muitos caminhos, levaram na mesma bagagem sonhos, segredos e coragem.
Depois de muita aventura buscaram vida abrigada e na cabana inventada tinha cama, colchão e almofada. Panelas de todo tamanho, pratos, facas e alguns panos e um sem fim de convidados vindos de todos os lados querendo provar um bocado.
A bruxa nunca aprendeu a mexer o caldeirão que dirá a preparar qualquer tipo de porção. Isso não mais lhe importava. Fazia seu bem amado com um pouco de magia que ela mesma lhe ensinara. Uma troca mais que justa para quem sabe ser bruxa.
De uma bruxa e um cozinheiro tenham todos bem cuidado! Não abusem da comida nem dos dedos afilados! Entre uma sopa e um guisado, entre um peixe e um flambado alguém sai enfeitiçado. E se a lua invejosa rouba o brilho das estrelas desfilando toda cheia, pode ir logo preparando muita erva e infusão pra lutar contra o feitiço dessa dupla armação. Já vi gente virar bicho, gato brincando com leão e até orelha humana fervendo no caldeirão! Essa dupla não é mole não!
E agora eles têm cria! Sangue e veneno misturados. Será bruxa ou cozinheira a menina prazenteira? Eu diria uma fada rara dessas com imaginação que vai soprar muitas estórias em bolinhas de sabão...

AL/2009

La bruja y el cocinero


Para Wanda, Sophie y Michel

Toda bruja es rara, pero a esa no le cabía comparación. Cara de bruja tenía. Nariz empinada, ojos de fuego y cabello erizado. La boca... ocultaba una lengua tan larga que vivía enroscada. Difícil era entender lo que ella hablaba. En las orejas, tenía un tapón. Escuchaba con el corazón. ¡Esdrújula!
Casa no precisaba. Vivía revolviendo la tierra, volando entre las nubes, buceando en aguas profundas y cruzando relámpagos. Se metía en la vida ajena inventando soluciones, pero como no cocinaba, ¡no preparaba pociones...! ¿Lo puedes creer?
Tenía unos dedos tan largos que parecían unas agujas. Cuando pinchaba un cuerpo, hacía salir un montón de burbujas. Debía ser el tal veneno... Eso cuando no provocaba viejos gases que tronaban revolviendo en la gente vísceras e ideas gallardas. ¡Que asco!
Mas un día esa bruja tan apuesta y embustera se cayó de la escoba...
Como siempre, buscando confusión, se metió en una pelea en un taller de aparición. Se burlaron de ella porque no tenía un calderón. Quedó tan enfadada que usó hechizo nuevo nunca antes ensayado transformando a los presentes en osos, macacos y serpientes. Salió bufando descontrolada arrastrando su escoba por los aires y anunció en las páginas del cielo con estrellas combinadas que buscaba un chef cocinero para enseñarle todos los secretos del fogón.
Mas el tiempo se arrastraba y no aparecía nada...
Mientras estaba buceando un día en un océano turbulento, vio pasar un cocinero revestido de algas claras, nadando tranquilo en la corriente. Tenía un bolso escondido con algunas especies raras debajo de un caracol que usaba en la cabeza. Y unos ojos azul calmante que miraban muy distantes.
¡La bruja se quedó sin aire delante de aquella rareza! Y si no fuera por sus poderes, hubiera muerto ahogada en su propia naturaleza. ¡Bien hecho!
Empleó una voz suave para llamar la atención, pero el guapo cocinero solo estaba interesado en su nueva creación: Sopa de erizo con saliva de tiburón. Una entrada exuberante para una fiesta muy importante.
La bruja intentó de todo. Hasta bailó un tango con la escoba en el medio de un cardumen de salmón, pero el sabio cocinero continuó su trabajo sin ninguna hesitación.
Finalmente ya cansada, fue a dormir en tierra firme al lado de un cantero de especias. Hizo una cama de ruda y manzanilla y esperó que llegara el día.
¡Y no resulta que otra vez el cocinero apareció! Parecía que el destino quería jugar con aquella bruja que de todo ya vivió.
El galante maestre guisandero eligió unas cuantas hierbas mientras silbaba una vieja canción francesa que nadie más recordaba. La bruja deslumbrada lo acompañó con su voz más afinada y así, finalmente, el cocinero cruzó su mirada. Fue pasión, no tengo duda. De esas que muerden y matan. Y trazando otros caminos, llevaron en el mismo equipaje sueños, secretos y coraje.
Después de raras aventuras buscaron vida abrigada y en la cabaña inventada tenían cama, colchón y almohada. Ollas de todo tamaño, platos, cuchillos y algunos paños. Y un montón de invitados venidos de todos lados queriendo probar un bocado.
La bruja nunca aprendió a revolver el calderón. Ni siquiera prepara una simple poción. Pero eso no le importa ni una cuchara. Lo hace su “xuxu” amado con un poco de magia que ella misma le enseñara. Una permuta más que justa para quien sabe ser bruja.
¡De una bruja y un cocinero tengan todos mucho cuidado! ¡No abusen de la comida ni de los dedos afilados! Entre una sopa y un guisado, entre un pescado y un flambeado, alguien sale hechizado. Y si la luna envidiosa roba el brillo de las estrellas desfilando toda llena, ponte rápido las botas y prepara una infusión para luchar contra el erizo de esa dupla de listos.
¡Ya vi gente convirtiéndose en animal, gato jugar con león y hasta oreja humana hirviendo en el calderón! ¡Que dupla, che!
Y ahora gente mía ellos tiene una cría! Sangre y veneno mesclados. Será bruja ó cocinera la niña placentera?
Yo diría una hada rara de esas con imaginación que va soplar muchas leyendas en burbujas de jabón...

AL/2009

Tradución: Diana Gamarnik

Perguntas


Pergunto para que
Se o quê ta escondido
E o quê que não pergunto
É o que já sei contido
Melhor não pergunto nada
Porque do nada vem o pedido
Do quê que quer pergunta
Pra tudo o que duvido
E o que quero é saber
Por que sempre pergunto
O que não tem resposta

AL/2007

Waldir Azevedo - Brasileirinho

Tentame


Ensaio o tom
Que rompe o muro
Azul profundo
Falso eco no instante
Em que as notas juntas
Revelam ser
Uma nota só
Soa surdo desafino
Entre o todo e o pedaço
De um sopro sem espaço
E uma corda que se rompe
Leva a dor em profusão

AL/2009

Manuel de falla- El amor brujo- 5.A Medianoche. Los Sortilegios

Perigo

Pisca a luz insistente
Fora e dentro alucinada
Uma barreira avisando
Outra travando entrada
E o perigo esperando
Distraído que resvala
Ou qualquer outro metido
Que não tem medo de nada

AL/2007

O. Silveira e E. Salles - Perigoso

Quando a paz incomoda



Dia livre na cidade
Que não para
Abundante calma
Incomoda
O agito soberano
Pulsa
Sobre-humano
E confunde a paz
Que passeia
Com folga
Pelas ruas
Vazias

AL/2008

Chopin - Valse Op. 64/3

Dualidade (Sobre os Aguayos)

Cada ponto um contraponto
De encontro ao desejado
Onde duas vidas unem
Erros, falhas e bordados
Completando o que falta
Compartindo o resultado
Ao fim de cada cria
Somando um pedaço
Compondo assim a manta
Abrigo e retrato
De uma vida inteira
Única em seus laços

AL/2008

Schubert - Fantasie in F minor for Piano Four Hands, D940

Frágil


Frágil vida
Escondida
Tantas cascas
Suposta vida
Preciosa

AL/2008

Chopin - Variationen B-Dur op.2 f r

Casa Nova

O sertão tem dessas coisas... Tudo tem o seu lugar. Cada qual é cada qual e promessa é coisa séria. A palavra segue em frente. Falou ta falado.
Falta água, é verdade, mas não falta esperança. Mesmo sendo a terra seca, desnutrida e sem riqueza. Mesmo a fome instalada desde cedo na pessoa, não é culpa nem capricho da senhora natureza.
A culpa é do homem que sequer enxerga longe e de perto só festeja seus mesquinhos interesses de poder e de grandeza.
Exemplos têm aos montes, espalhados com certeza, mas tem uma estória boa onde o acaso rouba o prumo de uma gente condenada a deixar o que possui em troca de uma promessa.
Povoado esquecido pela marcha do progresso, já estava acostumado com o atraso e a calmaria que reinava em seus limites.
Até mesmo a paisagem copiava no horizonte esses traços de dureza e teimosia.
Mandacaru é mais presente e fiel a natureza. Quando frente a quem provoca, mostra toda sua beleza, e até fruto e flor exibe enfeitando o caminho do que vive o que lhe cabe. Mandacaru tem água dentro.
O rio que corre ralo é cuidado e venerado como quando se espera uma dádiva anunciada, sem apuro ou rebeldia. Cada coisa tem seu tempo, e no sertão ninguém tem pressa. Só paciência.
A vida segue hora igual pra todo mundo e o mundo é tão pequeno que o que entra se concentra e o que sai é escolhido. Amor ou covardia, alegria ou tristeza, desejo ou agonia. Não tem nada complicado. E o homem que complica não entende de escolhas.
Simples é um bom começo para um povo que já sabe como vai morrer um dia. Nem mais rico nem mais pobre, nem mais sábio nem mais crente. Porque a vida no sertão, não importa a muita gente.
Vivem bem acomodados em seus lares sem conforto, compartindo os bocados e o que sentem em abundância.
Alguns partem a procura de outra vida lá distante e se enrolam com os fios do seu ninho retirante. Acabam transformando o asilo em nicho errante.
É escolha, é liberdade que se planta no sertão e que cresce sem miradas de inveja ou proteção.
Aos que ficam nada muda, só se acerca à solidão que vai vir antes do fim se instalar naquele chão.
Mas um dia sem aviso, feito chuva de verão, veio gente de outras bandas exibindo a novidade, que vestida para festa, animou o povoado que dormia o mesmo sono sem qualquer alteração.
Muita água ia chegar para aquela região. - O sertão vai virar mar! Repetiam em profusão.
Engenheiros, deputados, arquitetos e comissão. Todos prometiam ao povo uma nova ocasião. Trabalho, água pura, variada plantação, rio de peixes, terra rica, educação.
Parecia um sonho visto desde a alma apaixonada que se entrega totalmente a imagem inventada.
Escutaram pacientes as balelas e as verdades misturadas nas palavras dessa gente competente que depois de tantas voltas ordenou aos residentes a abandonarem suas casas.
Uma barragem nasceria da cidade inundada. Sacrifício exigido desse povo ali presente, pra salvar todo o sertão de um destino inconseqüente.
Tanto choro, desespero, medo da destruição. E o novo que seria? Mais angustia insegurança, e a distância aumentada da lembrança à alusão.
Ameaça, resistência, moradores inconformados formaram mutirão. Mas o povo não tem voz quando a lei é do patrão.
Muita coisa é prometida, outras, pura apelação. E o povo obedece por não ter outra opção.
Uma data foi marcada e teve início a construção da cidade nova que seria um modelo planejado, invejado e copiado no futuro da nação.
O projeto foi estudado, discutido e refeito para dar ao cidadão o que era de direito. Tudo tinha seu lugar. Casas, hortas, escola, igreja, posto médico e comércio. Prefeitura, fórum, ruas, praças, campo de pelada, saneamento completo. Sem faltar nem cemitério. Casa nova para os mortos descansarem desse inferno.
Esqueceram do lugar onde vivem os sentimentos. Baixo água ficariam e um dia escapariam com a força da torrente, pela comporta aberta da barragem, transformando em energia, toda a vida de uma gente.
E o novo que seria? Muita vela e romaria.
Reuniões foram marcadas, reboliço noite e dia. Tanta coisa pra pensar, pra juntar na mala velha e levar pra casa nova como resto de um passado que mais nunca voltaria. Morte certa se sabia e o luto já crescia pelas ruas da cidade que em breve afundaria com as preces e as verdades.
O medo varava a noite encoberta em pesadelos que o povo revivia. Avessos aquela mudança agarravam assustados suas coisas, memórias e fantasias.
O tempo agitou cabeça adentro vestindo de pressa a ação e o entendimento. Para o medo e a insegurança... Não havia mais fermento.
Enquanto se erguia a cidade planejada, a velha ia ficando com a alma abandonada.
Nada mais se produzia e dinheiro pouco entrava. Tudo estava estagnado esperando hora marcada. A angustia coletiva parecia concentrada na tristeza que viria ao findar das amizades e na perda dos seus símbolos de cultura, fé e lealdade.
A igreja onde muitos se casaram, outros tantos já velados, quase todos batizados. O banco da praça onde o beijo foi roubado. A árvore frondosa marcada com lâmina e sangue dos casais enamorados e o coreto onde a banda se exibia a cada ano na festa mais importante ofertada ao padroeiro Santo Antônio.
O velho mercado imundo onde cada terça-feira toda troca se fazia. Carne seca, leite, couro, fumo de corda e farinha.
Carregar não se podia. Muita coisa carece de morrer e findar exatamente onde quer estar. E de respeito se entendia.
Um arquivo foi criado pra salvar tantas memórias e com carinho e cuidado todos foram compartindo suas preciosas estórias.
A dinâmica se instalou e aceitar virou remédio pra reassentar em casa nova, povo, imagem e sentimento. Aceitar não cura nada, mas ao menos se alivia.
Depois de uns três anos, a cidade estava pronta e o rio desviado esperava em calmaria pra voltar aquele leito onde antes ele corria.
A barragem já crescida era mesmo poderosa. Uma montanha de concreto se exibia controlando as águas doces, dando sopa a quem tem fome, espalhando esperança onde todo o sacrifício resultava ainda estranho.
Numa data ensaiada a cidade abriu as portas e era incrível de se ver, o novo de alma exposta pra agarrar tudo o que gosta.
Os primeiros a entrar foram os mortos já chorados em suas novas urnas agora mais apertados. Os mais novos já estavam como antes combinado. Cada vivo que morria era logo enterrado no cemitério novo antes mesmo da cidade ser um sítio habitado.
Reviver a dor da morte de um ente tão querido deixa marcas tão profundas que sequer cabe num dito.
Terminado o leva e traz dos pertences encaixotados, o que ficou pra trás começou ser inundado pelas lágrimas que rolavam dos olhos marejados. Uma página esvaneceu e cada um foi se apossando do novo espaço que era seu. Casa nova e planejada é mais fácil de arrumar. As coisas vão entrando, cada uma em seu lugar.
Era tanta correria que nem mesmo perceberam quando as comportas da barragem foram por fim escancaradas e a água subiu valente pelas ruas da cidade abandonada. Morte lenta já se via, e mais dia menos dia, o rio passaria, levando com ele os destroços sem valia, fincando lá no fundo os restos do que foi já transformado em coragem de seguir vivendo em outro mundo recriado.
Muito tempo já passou e o povo ainda sente a falta que faz na gente um pedaço da vida arrancado de repente.
Transplantar, reassentar, re locar um bem amado, faz sentido quando o plano é salvar do mal cravado. Todo o resto é vaidade, desejo de novidade que pode levar o homem a um destino de inverdade.
Casa Nova é exemplo, de avanço e de instância. Mais que tudo de vitória de um povo acostumado a viver de qualquer água.
Numa coisa eu insisto... Água muita é desperdício quando a terra perde o viço. E o sertão é terra ingrata onde o sol arde e queima quando o homem quer bravata.
Enganar a natureza não é coisa que se faça!
Um açude encantado bordeando a terra seca, nem de longe satisfaz o desejo de riqueza desse povo sertanejo.
O sertão tem dessas coisas...

AL/2008

ABC


Animado aderiu ao ato
Avesso antes a atitude
Abelhudo agora aceita
Aventuras amiúde

Bobo buscando briga
Brinda breve bravura
Berrando boas besteiras
Bagunça, barganha, bajula

Comprando causas chulas
Com crias caricaturadas
Corre cego calculando
Cremando certezas caras

Despoja depois de dado
Decide detrás do dia
Defende direitos débeis
Debaixo da demagogia

Esconde erros estúpidos
Entre estórias enroladas
Encolhendo esperanças
Em escolhas esmeradas

Fama fugaz fabrica
Força forjada floresce
Ficando frágil flagela
Fantástico fim fenece

AL/2007

Yamandu + Dominguinhos - Perigoso

Combinado

Desde que a vida cante e o tempo padeça
Desde que a paixão brote e o amor cresça
Desde que o dia fatigue e a noite amorteça
Desde que a chuva regue e o sol aqueça
Desde que a dor arda e a cura aconteça
Desde que a mentira corra e a verdade apareça
Desde que o corpo afirme e a alma reconheça
Desde que o grito invada e o eco permaneça
Desde que o olhar penetre e a lágrima desça
Desde que o calor abale e o frio adormeça
Desde que... Nada mais careça

AL/2007

Bizet- L'Arlésienne - 4. Carillon

Um


Semente
De Pai e Mãe
Fecunda

Fruto
De Pai e Mãe
Nutrido

Cresce sendo
Saber desconhecido
Recriado no âmago
Sustento e equilíbrio
De vida e de morte

AL/2008

Rachmaninov - Rhapsody On A Theme Of Paganini, Op.43

Por acaso

Se o acaso existir
Vou a ele pedir
Um grão de bravura
Que faça em segredo
E mostre aqui dentro
Que é só coisa pura
Ou fique de fora
Fazendo lambança
Enquanto procura

Se o acaso se for
Vou ainda segura
Sem nada pedir
Cantando ventura
De dentro ou de fora
É só coisa pura
Querendo existir
Se nada perdura
O acaso me cura

AL/2009

Handel - Semele - Where'Er You Walk

Peixe de água doce

Acordei se sonho fosse
E era peixe de água doce
Que nadava em companhia
De outros peixes de valia
Me diziam onde ir
Traduziam o que queriam
Encontravam de comer
Dividiam o parecido
E eu seguia sem saber
Ou querer saber contido

Quando as águas misturaram
Vi perdido o cardume
Sem saber sobrenadando
Na corrente da vertente
Procurei o rio profundo
Pantanoso outro mundo
Que guardava o que aspirava
Todo peixe vacilante
Água doce agora vive
E despeja mais distante

AL/2008

Ravel - Piano Concerto In G - 2. Adagio Assai

Intenso


Intensa a luz
Olhar distante
Vibrantes cores
Em vida errante
Alma pulsando
De dentro afora
E o mundo mudo
Que ignora
Intenso intento
Idéia rala
Espelho mágico
De ti exala
Desejo

AL/2009

Schubert – Impromptus, D946

Duelo


A luta havia sido marcada para o final da tarde daquele mesmo dia com o vão propósito de diminuir o desespero dos que se enfrentariam. A arma escolhida era antiga conhecida de ambos, o que dificultaria muito a luta e os golpes.
O motivo, já nem importava... E o vencedor menos ainda.
Cada um em seu momento revisava a vida sem sentido procurando uma lembrança qualquer para levar como escudo protetor ao medo crescente em abandonar o corpo sem sonhos aderidos.
As horas iam passando carregadas de angústia enquanto no lugar marcado, uma multidão esperava ansiosa para assistir a mais uma luta insana entre forças tão iguais.
Os dois chegaram disfarçados de coragem exibindo um sorriso pálido típico dos que já morreram. Apertaram as mãos misturando os suores e as dores e se afastaram o suficiente para deixar que a ira crescesse e dominasse o espaço escolhido.
O duelo de golpes seguros e certeiros durou apenas o tempo necessário para que o vencedor deixasse no solo a vítima do seu acometimento nem mais viva nem mais morta do que ele próprio na sua pele desconhecida.

AL/2007

Aforismo

Quem deixa pegadas leves
É porque já sabe voar

Quando a água invadiu minha casa

Não foi chuva, nem torrente
Nem um copo derramado
Muito menos uma gota
Ou um cuspe malcriado

Não me lembro quando foi
Nem se foi já combinado
Só sei que começou
Em um canto descuidado

Percorrendo os refúgios
Invadiu as estruturas
Minando nas paredes
O desenho da mistura

E o frio que acompanhava
A umidade crescente
Fez que a casa mergulhasse
Nesse mundo envolvente

E a água foi subindo
Engolindo toda a casa
Que agora vive unida
Ao que antes desejava

AL/2007

Chopin – Polonaise - Op.26 Nº1

A roda


O homem cortou o pão
Que matou a fome
Que cortou a vergonha
Que matou a cobiça
Que cortou o caminho
Que matou o ócio
Que cortou a corrente
Que matou o desejo
Que cortou a razão
Que matou o homem
Que cortou o pão

AL/2007

Mozart - Requiem Mass in D minor, K. 626: I. Introitus: Requiem aeternam

Preto e branco

Cores fortes que em mim ressaltam
Todo o misto que componho
Nas nuances de outros tons
Frios, claros, vibrantes, francos
Feito outra natureza
Que se exibe em todo encanto
Diante dos meus olhos crédulos
Traços castos em preto e branco

AL/2008

Josef Suk - Piano Trio in C minor, Op.2

É?

Parece fácil
Soltar a voz no mesmo espaço
Deixar soar só o que acho
Sem importar se rima faço
Parece fácil
Subir no topo do penhasco
Buscar abaixo o que nem acho
Voar com as asas do meu traço
Parece fácil
Seguir contando estórias
De segredos roubados
Colher na tal memória
Detalhes imaginados
É. Parece fácil

AL/2008

Lalo – Symphonie espagnole op. 21

O que não se conta

Nos espaços habitados
Tanta coisa sem ser dita
Vai subindo entre paredes
Como visgo, trepadeira
Parasita de outros medos
Que do alto acreditam
Libertados do dever
De nutrir sua própria seiva
Desconhecida

AL/2008

Villa Lobos - Suíte Floral: 1 Idílio Na Rede

A equipe


Fazia muito frio quando saí de casa para trabalhar. Estava bem vestida. Com meias de lã, pulôver, cachecol, luvas e um casaco impermeável que herdei da minha mãe. Escutei no rádio que a temperatura chegaria a 2°. Meu corpo sentia muito menos. Quase não consegui caminhar até a parada de ônibus que ficava a cinco quarteirões.
Apressei o passo para ganhar um pouco de calor. Com a respiração ofegante soprava nuvens de vapor enquanto meus olhos lacrimejavam por culpa do açoite de um vento maldoso.
Na rua pessoas caminhavam escondidas debaixo dos agasalhos sem muito interesse umas nas outras.
Entrei no ônibus e procurei um banco bem longe da porta para não receber a corrente de ar gelado. A viagem até o trabalho dura quase duas horas e ao final o ônibus parece mesmo uma lata de conserva. Aperto e profusão de cheiros, cores e espécies.
Cheguei ao edifício como de costume antes dos meus companheiros de trabalho. Ali o frio não entra. As janelas são bem fechadas e um sistema de aquecimento deixa o ambiente com a temperatura constantemente agradável.
Vesti meu uniforme e fui buscar o material de limpeza. Começo sempre pela grande sala que mais parece um amontoado de pequenas jaulas onde paredes baixas fingem separar e proteger as pessoas. Acho que intimidade é uma palavra que não faz nenhum sentido ali. Quem quiser descansar dos olhos e ouvidos alheios, tem de se refugiar nos banheiros ou encontrar uma boa desculpa para sair à rua.
Vivem repetindo que o sucesso de uma grande empresa é alcançado pelo esforço do trabalho em equipe. Melhor nem procurar entender. Essas idéias são muito complicadas para uma simples faxineira.
Terminei rápido de aspirar a pouca poeira, esvaziar as lixeiras, molhar as plantas. Espirrei um pouco de “bom ar”, e segui para a sala da presidência. Sou a única que tem o direito de entrar ali para limpar, mas confesso que não sinto nenhum orgulho desse feito. Sinto mesmo é um medo constante de tocar cada objeto. Faço porque são ordens, e ordens na minha posição só se discute quando não se toma risco.
Essa sala sim tem personalidade. É a cara do presidente. Espaçosa, bonita, elegante, com pouca coisa realmente à mostra. E o que se vê é raro e valioso. Pelo menos é o que dizem, pois também nunca entendi muito bem sobre os valores dos ricos.
Limpei os objetos e os quadros como se deles dependesse a minha vida. Aspirei, tirei o lixo, desinfetei o banheiro, e deixei os vidros das janelas quase invisíveis. Parece um sonho ver a cidade ali de cima. Tudo se vê pequeno e inofensivo. E por uns instantes posso acreditar estar protegida nessa torre alta. Sonho intensamente porque depois, não tenho tempo. O dia passa lento e pesado de afazeres.
Aos poucos todos vão chegando e tomando seus lugares e deveres. Assim como eu que sigo para a cozinha preparando cafés, chás, sucos, e outras esquisitices que me pedem. Difícil de lembrar todas porque os gostos e manias mudam sempre. Acho que para não chamar muita atenção.
Gente estranha essa que trabalha em equipe...
Algumas são simpáticas, me cumprimentam, e até me dão presentes de vez em quando. Eu agradeço, mas às vezes me pergunto se elas realmente pensam em mim quando o compram. Quase sempre são coisas de pouca serventia. Mas a gente se acostuma a isso também. Pra mim, quem dá sem olhar, quer tapear. Na verdade não se deve esperar o contrário de pessoas que se escondem tanto. Acabam vendo muito pouco.
De vez em quando faço um bolo e levo pro pessoal da sala grande. Faço com cuidado e vontade. Claro que tem uns que receiam e nem comem. Todo mundo tem o direito de desconfiar do desconhecido.
Na hora do almoço a maioria aproveita para sair. Uns poucos comem na cozinha a comida que trazem de casa. Outros encomendam em algum restaurante próximo alegando falta de tempo. Realmente dá pena de ver essa gente que até para comer, não para. Nós da limpeza, comemos tranquilamente e quase sempre compartilhamos a comida e outras coisas. Esticar a convivência... Bem, isso já é opção de cada um.
O Presidente chegou tarde hoje. Deve ter tido um motivo muito forte, que eu jamais vou saber, pois normalmente chega cedo e sempre é uns dos últimos a sair. Esse sim parece não ter vida além dessas paredes e sou capaz de apostar que também não tem tempo para sonhar.
Estava muito nervoso e agitado e foi contagiando todo o ambiente. Nessas horas é muito melhor ser apenas uma faxineira. Pedem-te apenas o que está ao teu alcance e não te culpam de nada. Quanto aos que trabalham atrás daquelas meias paredes...
Era um rebuliço de gritos, papeis e telefonemas. Parecia que todos estavam tentando se salvar de uma tempestade no meio do mar. Aquilo devia ser o tal trabalho em equipe que tanto pregam, onde o Um vira um Todo de verdade. Pelo menos na hora do sufoco vi funcionar. Só não entendi se o que faziam era pelo Todo ou pelo o Um mesmo.
No meu bairro a gente costuma fazer mutirão quando, por exemplo, chove muito e o muro de uma casa desaba. Todos se juntam e levantam o muro em poucas horas. Uns emprestam material, outros servem de comer aos que trabalham e por aí vai. Bom, não pretendo comparar uma grande empresa com um pequeno grupo de moradores de um bairro pobre.
Confesso que ao final do dia fiquei admirada. Estavam todos se abraçando, comemorando e rindo. O Presidente até pediu que servíssemos aquela bebida com bolinhas que ele costuma oferecer as visitas importantes. Falou umas coisas bonitas, e brindou ao sucesso da equipe. Pra mim faltou um pouco de emoção...
Depois cada um pôde por fim arrumar seus pertences e sair dali levando um sorriso aliviado na cara. O sorriso do Presidente evidentemente era o mais espontâneo e parecia que ia durar por dias. Pediu-me ainda para preparar-lhe um pequeno lanche, pois pretendia ficar até mais tarde no escritório. Pensei cá com meus botões, que em sua casa não deveria mesmo ter ninguém para comemorar a suada vitória.
Depois me dispensou como de costume repetindo a mesma frase: - Boa noite senhora, obrigado e até amanhã... Olha sempre nos meus olhos quando diz isso, mesmo sem me ver realmente.
Por conta desses acontecimentos perdi minha hora. Levarei quase o dobro do tempo para chegar a casa.
Vesti meus tantos agasalhos e saí apressada esbarrando nas pessoas que cruzava pelo caminho. Tomei o ônibus já abarrotado e viajei o tempo todo de pé e espremida. Os pensamentos vinham em cascata, mas o cansaço era tão grande que logo os levavam tão distante que não saberia onde resgatá-los. Decidi fixar a vista no que passava pela janela para espantar o sono. A cidade assim de perto perde todo o encantamento e o sono me venceu a tal ponto que dormi mesmo de pé. Não sonhei nada. Melhor assim. Os sonhos de olhos abertos são mais bonitos e menos enrolados. Idearei amanhã, enquanto estiver limpando os vidros...

AL/2008

Haicai

No bolso
Mãos enrugadas
Invejam outras
Que tocam livremente

AL/2008

Luna


Luna era pequena ,dócil e meiga
Sonhava com príncipes e fadas, via-se princesa
Tímida só dançava às escondidas e via-se bailarina
Brincava com bonecas e formigas quando lhe faltava amigas
Viajava de balão para tocar as estrelas
E criava asas para salvar os pássaros das presas
Temia o mar, mas não sua profundeza
Cantava no banheiro reluzindo sua beleza
Tinha medo do escuro e de fantasmas
Dormia de luz acesa
Adorava a vida
Sofria pelos outros e esquecia dela mesma
Hoje é amiga da criança
Guarda entre páginas todas as lembranças
Que talvez um dia solte ao vento

AL/2005
E. Gismomti - Ciranda

?

O nome que se dá à coisa
Não é sempre o que a coisa quer
Se a indagassem antes
Saberiam o que realmente é
Porque antes de ter um nome
A coisa já existia
Nome torna-se insignificância
Quando o que contem
Não for singular por instância

AL/2006

Bach: 2-Part Invention 8 In F, BWV 779

Acolhida

A menina dorme
Onde o tempo não atua
Esperando o sopro certo
Que faz crescer
E o sopro vem trazendo
A verdade embebida
Por cada parte viva
Que quer crescer
E a vida apresenta
Tantas vias escondidas
Onde a menina oscila
Sem saber crescer
E a luz que acorda
Desvenda a força
E envolve a menina
No que já cresceu

AL/2007

Claude Debussy – Claire de lune

Invadida

Hoje a saudade invade
E no meu peito arde
A distância imensa
Que aparta os fatos
Do tempo de existir
Hoje a palavra esquece
O sentido exato
Por não saber dizer
Em linhas rimadas
O que só sei sentir
Hoje me confio ao sono
Na noite tão cálida
Sem coisa a perder
Deixando que só ele saiba
O pouco que eu quero ter

AL/2007

Elgar - Variations On An Original Theme, Op. 36, "Enigma"

Castigo

Cavo a terra árida
Com as garras afiadas
Nada encontro
Encontro o nada
E nas garras a terra crava
E fere a pele
Até sangrar

AL/2007

Villa-Lobos - Ciclo Brasileiro: Dansa do índio branco

Pé de manga


- Sai daí menino! Você vai cair e se esborrachar no chão. E quando isso acontecer, não quero choro nem manha. Já avisei!
D. Tereza repetia essa frase cada vez que encontrava Tiago deitado no galho da mangueira do quintal olhando pra cima e falando sozinho.
- Esse menino não varia bem da cabeça, Reginaldo. Melhor a gente chamar uma rezadeira antes que seja tarde.
- Qual nada Tereza. Deixa o menino variar tranqüilo... Que implicância!
- Onde já se viu ficar conversando a tarde inteirinha com uma formiga e uma lesma como se fosse gente! Por que diacho não vai brincar com os outros meninos lá no campo? Eu num to gostando nadinha disso. Vou tomar uma providência é já.
D.Tereza mandou buscar a rezadeira, uma senhora cuja idade ninguém mais sabe, moradora solitária da mata. Acudiu trazendo uns ramos de arruda recém colhida pra rezar na cabeça e no corpo de Tiago, que aceitou tudo calado disfarçando a curiosidade, e depois voltou correndo pro pé de manga. Não sem antes agarrar umas folhinhas de arruda pra rezar nas lesmas que segundo ele, eram estranhamente preguiçosas.
A rezadeira depois de um longo suspiro proferiu: - O menino ta com quebranto dos brabos. Carece de banhos de erva da mata por uma semana inteirinha. E não antes do sol se pôr! Coisa que D. Tereza providenciou sem demora.
Claro que as lesmas também tiveram de seguir o mesmo tratamento...
Mas o tempo ia passando e Tiago parecia gostar mais de brincar no pé de manga do que com os poucos amigos que tinha.
Às vezes convidava algum para subir com ele na árvore, mas depois de comerem mangas e saltarem de galho em galho, o outro se fastidiava e ia buscar coisa melhor pra fazer.
Nos dias de chuva, Tiago costumava levar uma lona e improvisar uma cabana entre as ramas. Não era o que mais gostava. Preferia mil vezes a aventura em descoberto tentando alcançar o galho mais alto para chegar mais perto das nuvens. E foi movido por esse desejo que um dia, enquanto trepava nas toras já velhas, uma delas arrebentou e Tiago foi com tudo pro chão.
É... Praga de mãe é a pior coisa que existe! Difícil um escapar.
Além do corpo todo ralado e de uma perna quebrada em vários lugares, Tiago perdeu os sentidos o tempo suficiente para deixar D. Tereza desesperada.
- Eu sabia! Agora sim é que meu menino vai ficar variado de vez. Valei-me Nossa Senhora do Socorro! Salva esse meu filho que ainda é anjo.
Por uns dias Tiago até delirou de febre, e as feridas demoraram em cicatrizar. A perna ficaria imobilizada pelo menos uns dois meses, o que acabou deixando Tiago por demais agoniado.
A melhora foi realmente lenta e sofrida.Tiago sentia muita falta do pé de manga, das lesmas, das formigas, das alturas e das nuvens.
Um dia acordou mais disposto e pediu umas mangas para comer. D. Tereza pensando que finalmente lhe voltara o apetite trouxe toda contente um cesto cheinho de mangas maduras e docinhas. A partir de então, Tiago comia manga, no café, no almoço e na janta. E mais nada.
Palpites choviam de todos os lados e D.Tereza já não sabia o que fazer. Para piorar ainda mais a situação Tiago implorou com os olhos encharcados e tristes que lhe trouxessem uma lesma e uma formiga lá do pé de manga.
Sem mais remédios, atenderam ao pedido e foi com surpresa e espanto que testemunharam a alegria do menino segurando nas mãos os dois vidros em que foram transportadas. Cada noite Reginaldo seu pai, leva-as de volta à árvore a pedido de Tiago que dizia: – Elas são minhas amigas sim, mas precisam cuidar da vida delas também.
A rezadeira vinha quase todos os dias e Tiago já tinha decorado algumas das rezas que a velha murmurava tropeçando entre a língua e a memória.
Agora além dos banhos, davam-lhe também infusões variadas que mais pareciam porções de bruxa. Tomava tudo e guardava sempre um pouco para a lesma. Apesar de não sofrerem do mesmo mal, achou que não custaria nada tentar a mesma medicina. Dizem por aí que quando se acredita, tudo se consegue. Se bem que parecia mesmo era que a lesma não tinha muita fé, pois continuava cada dia mais preguiçosa.
Como amigos e parentes visitavam pouco, Tiago aproveitava o arrastar do tempo para alimentar seus devaneios.
Mas e as nuvens ? Da janela do seu quarto não se via muita coisa... E mais uma vez Tiago foi levado a mover-se para alcançar um desejo.
Combinou em segredo com a formiga e a lesma que naquela mesma noite fugiria até o pé de manga.
Depois do banho de erva da mata e de jantar manga assada, tomou a caneca de infusão e adormeceu profundamente.
Sonhava que já era noite alta e pouco estrelada. A lua entrara inteira pela sua janela iluminando todo o quarto. Levantou-se lentamente e sem fazer muito ruído, retirou as talas que imobilizavam sua perna remendada. Saiu pela janela mesmo e deu a volta pela casa até chegar ao pé de manga. Ali lhe esperavam um batalhão de formigas e lesmas que rebaixaram o mais que puderam um galho da árvore para que Tiago pudesse agarrar e subir de um só impulso. Depois foi só ir escalando as ramas e em pouco tempo lá estava ele pertinho das nuvens. Acomodou-se mirando o céu em silêncio até que uma nuvem grande cobriu a lua e fez-se noite escura. Tiago a chamou convencido. Já que estava mesmo flutuando por ali, poderia descer mais um pouquinho, pensou.
A nuvem concordou, desceu e cobriu quase toda a copa da árvore. E em troca, pediu a Tiago que tentasse descobrir o que ela levava dentro. Voltaria cada noite para buscar uma resposta.
Amanhecia quando D. Tereza entrou no quarto trazendo o suco de manga para Tiago que dormia como um anjo. Acordou ainda meio zonzo sem saber se era sonho ou verdade o que agitava a sua mente. Tomou o suco de um só gole e depois pediu à mãe que lhe fizesse ovos mexidos com cuscuz de milho. D. Tereza ficou tão emocionada que quase queimou os ovos. Depois de devorar tudo, Tiago tirou da gaveta da sua mesa de cabeceira um caderno novinho em folha que havia comprado há tempos na venda do Seu Benjamim. Comprara assim sem saber muito bem pra quê, e o guardou com cuidado. Agora ganhou serventia. Usaria cada folha para escrever tudo o que fosse encontrando nas nuvens. Ficou tão ocupado que já nem pedia a companhia da lesma e da formiga todos os dias. Só de vez em quando para regar a amizade. Voltou a comer de tudo e até engordou a bochecha. A rezadeira já não vinha. Apenas mandava as infusões que ele continuou bebendo por mais um tempo.
D. Tereza, mais entendida, decidiu deixar o seu menino variar tranqüilo. E foi assim que quando já curado da perna, ele voltou a passar horas, deitado nos galhos escrevendo. Cada dia cumprindo o prometido deixava uma folha resposta pendurada na copa do pé de manga. De vez em quando uma folha caia e rapidamente era recolhida por aqueles que também entendiam de formigas, lesmas, mangas e nuvens.
Ah! A lesma jamais se curou da sua preguiça e Tiago achou melhor deixá-la em paz.

AL/2008

A janela

As folhas abertas
Os olhos também
A luz penetrando
Os braços cruzados
E a vida passando
Nos ruidos misturados
Na avenida larga
E no coração apertado

AL/2008

Brahms – 4 Ballades, Op.10

Aforismo

No espaço cheio de tudo um pouco
Há um grande vazio de coisa toda cheia

Longe

Longe é onde o sonho dura
A dor madura e a visão apura
Longe é onde o tempo dorme
Esperando acontecer
Longe é onde a alma chora
Quando quer desfalecer
Longe é onde o pensamento
Cria asas pra viver
Longe é onde quero ser

AL/2007

Chopin - Andante Spianato

Tango

Del deseo más satánico
Recubierto de pasión
Cruzan cuerpos prohibidos
En el ardor de la piel impura
Exhibida seducción
Movimiento combinado
Una fuerza que allega
Otra aleja el confiado
Violenta lucha oculta
Entre el miedo y el pecado
Un volteo enloquecido
Arrastrando las miradas
Entre pasos compartidos
De un pulsar descompasado

AL/2007

Piazzolla – Libertango Tango Suite

Babushka e o que vem de dentro

Farta boneca russa
Talismã colorido
Brincadeira revestida
De segredos conhecidos
Quando sai de dentro dela
Outras elas combinadas
Diminuem de tamanho
Até quase não ser nada
Nos seus traços verdadeiros
Ricos eles em detalhes
Guarda todos os anseios
Tal e qual a novidade
Quando muito cobiçada
Busca e leva encantamento
Mas acaba limitada
Sob o medo que vem dentro

AL/2008

Amorosa

Vou
Seguindo a melodia
Desse canto companheiro
De quem guarda nas manias
Um cuidado carinhoso
Leve
Feito nuvem em primavera
Forte e frágil passageira
Nesse céu desconfiado
Um descanso duvidoso
Solto
Risco traços bailarinos
Nas asas do que sou
Amorosa, verso e prosa
Artilheira do destino

AL/2009

Instante

Havia alguma doçura
Na onda de espuma salgada
Que na placidez da areia
Salpicava gotas aladas

Havia estrelas na noite
Pintando o céu de alegria
E um vento brando e fresco
Refrescando o que ardia

Havia um olhar perdido
Brincando de cabra-cega
E uma mão suave e terna
Guiando por entre a névoa

Havia uma aura acesa
Entre os sonhos acertados
Com a mais bela fantasia
Nesse instante encantado

AL/2007

Brahms - Vier Klavierstücke, Op. 119/1. Intermezzo In B Minor: Adagio

A mudança


A notícia inesperada era de que iríamos mudar de cidade sem entendermos ao certo por que. Meus pais não tinham muito tempo para ficar dando explicações a três crianças curiosas e perguntadeiras. Tudo teria de ser organizado com rapidez. Sem espaço para despedidas e pensamentos inquietantes.
Partimos sabendo apenas que viveríamos em uma cidade pequena às margens do rio São Francisco, irmã de outra que se encontrava do outro lado nem tão oposto, separadas pelo rio, mas unidas por uma grande ponte.
Na bagagem muita angústia e medo do desconhecido além de móveis e utensílios, que demoraram o mesmo tempo que nós para se acomodarem ao novo espaço que lhes foi concedido. Tudo muito diferente da vida tida confortável e novidadeira de uma capital.
A nova morada era na esquina mais movimentada do bairro e logo tivemos de perfilhar e acolher todos os ruídos que adentravam pelas tantas janelas de madeira protegidas com grades rendadas, disfarçando a visão das coisas prosaicas que desfilavam do lado de fora.
Os quartos eram todos eles interligados por grandes portas duplas guardando a intimidade, mas não separando totalmente os vínculos. Isso nos confortava durante a noite densa e abrasadora.
Sequer tivemos muitos dias para disfarçar a realidade como se fora apenas uma nova brincadeira. O colégio esperava-me do outro lado do rio com seus pátios frios e inibidores para que eu fosse exibida sem nenhum pudor.
O único prazer nas madrugadas pouco frescas era, a caminho do colégio, atravessar a sólida ponte partidária com o sol ainda sonolento e o céu pintado em vários tons alaranjados que cintilavam nas águas calmas e bucólicas do rio.
A cidade vizinha parecia ser mais bonita e atraente certamente por estar a pouca distância dos olhos e do coração, e ter as margens sempre claras e expostas.
Na volta de um dia desgastante por tantos ajustamentos, novamente era a ponte que me confortava ensinando-me o valor das trocas possíveis entre vidas diferentes e visivelmente separadas.
Depois de muitas idas e vindas, sem perceber, fui aceitando como meu, os novos pedaços que me chegavam envolvidos no calor das novas amizades e experiências. Pedaços que antes navegavam nas águas, esperando para serem finalmente aderidos.
Hoje guardo saudade daquele lugar onde aprendi a construir uma ponte ainda mais sólida entre o que sou e o que ainda serei.

AL/2006

Haicai

O gelo derretido
Faz um rio contido
Correr em mim

AL/2008

Virgen del sol (Aclla)

Yaz prometida
Rara belleza nativa
De la nación sabia y creyente
Que reza la naturaleza
Vestida en trajes nobles
Bebe la suerte y adormece
En el alto de la montaña
Protegiendo y protegida
Mientras sueña el destino
De su tierra amada

AL/2008

Ravel - Ma mère l'Oye (4hands)/1: Pavane de la Belle au bois dormant

Sem amarras

Toda vez que o vento aviva
Um segredo se destapa
Exalando pelos ares
O que tinha de conciso
E o nome escondido
Voa aberto com o vento
Lega à alma a liberdade
Onde a vida jaz precisa
E o sonho é mais provável


AL/2008

Schubert - Sonate D.958 c-moll

Bala perdida

Desceu descalço a rua estreita
Saltando poças moldadas
Sem ver portas nem janelas
Só a imagem a sua frente
Inocente como a mente
De quem vive na vertente
Do que é e do que sobra
E chegando bem pertinho
Do que tanto ele queria
Uma bala vem e acerta
O sorriso que trazia


AL/2008

Paganini - Violin Concerto N°1 In D, Op. 6

A amiga


Hoje é sábado, dia de dormir até mais tarde, deixar roupas espalhadas pelo quarto, tomar aquele banho demorado, emendar o café da manhã com o almoço e só depois planejar o que sobra do tempo. Pelo menos esse foi o pensamento que veio a mim logo que abri os olhos e pela janela vi o dia que já ia longe. Mas às vezes o dia toma outro rumo.
Mal terminei o meu café da manhã reforçado, e o telefone tocou. Era Martina uma amiga de infância que vivia na Bélgica e chegara para passar o verão com a família no interior. Duas semanas com os pais, primos, irmãos e sobrinhos, já lhe parecia uma tortura. Precisava respirar e não lhe ocorreu idéia melhor que a de vir passar uns dias comigo. Chegaria logo mais à noite e eu nem teria de me preocupar em buscá-la na rodoviária. Pegaria um taxi.
Não digo que não fiquei feliz. Gosto muito da Martina. Sempre nos divertimos muito quando estamos juntas. Mas chegar assim de repente... Por que não me avisou antes? Eu nem sabia que ela estava no Brasil! Enfim, às velhas amizades todo mundo se curva.
Dei uma olhada em volta e o desânimo me cobriu como uma nuvem pesada. Teria de começar fazendo uma boa faxina no meu apartamento. A Martina era alérgica a poeira e eu não suportaria passar a noite escutando ela espirrar e assoar o nariz ao meu lado.
Depois teria ainda de enfrentar a fila quilométrica do supermercado já que nos armários e na geladeira não havia sobrado grande coisa. O jantar seria um capítulo à parte. Não que eu não goste de cozinhar. Mas a Martina é daquelas pessoas enjoadas pra comer. Cheira a comida, vasculha com o garfo e no final sempre deixa algo no prato. Realmente, inoportuna! Além do mais, nossos gostos nunca combinaram. Eu gosto de comida saborosa, variada, trabalhada. A Martina come sem sal sempre a mesma coisa comum e óbvia.
Pouco antes das 9, ela chegou. Abri a porta e me deparei com o de sempre: Corte novo de cabelo, roupas fashion, uma mala enorme e cor de consultório. Martina é dentista e vive pra trabalhar. Nosso abraço foi longo e verdadeiro e as horas foram se acomodando às tantas novidades que tínhamos para contar uma à outra.
Martina sempre ganha de mim nesse quesito porque vive fora e tem sempre muitas queixas. Critica tudo mesmo sem conhecer a metade. Continua com o mesmo namorado brasileiro de há 5 anos atrás. Cada um vivendo na sua própria casa, e compartindo os poucos amigos e momentos livres.
Seu plano é de voltar pro Brasil assim que tiver dinheiro suficiente para montar seu próprio consultório. Eu, sinceramente, duvido muito que ela volte.
Ficou maravilhada com meu novo projeto de campanha publicitária. Quis saber de tudo nos mínimos detalhes. Achava minha profissão fascinante. Estar sempre viajando, conhecendo gente diferente, começando algo novo. Só não aceitou o fato de eu continuar sozinha. Tentei explicar que estava realmente curtindo a minha solidão depois de ter passado tantos anos sem poder respirar numa relação simbiótica-sanguessuga-parasita. Mas não adiantou muito. Martina é daquelas que não se agüenta. Precisa sempre de companhia. Nisso a gente também é diferente.
Como sempre, faltava ainda escutar todo um rosário de lamentações sobre a sua família. Essa parte só mesmo sendo muito amiga para agüentar...
Fomos dormir totalmente embriagadas e com o dia já despontando.
O domingo foi de ressaca e só deu mesmo pra assistir um DVD em casa. Locamos um drama desses bem exagerados e choramos um monte. Acho que a gente tava precisando. Cada uma por seus motivos.
Martina ficou cinco dias em casa. Não que eu não tenha gostado. A gente até que convive bem. A Martina é uma boa amiga. Mas sinceramente, da próxima vez que ela precisar respirar, espero que me avise pelo menos com uma semana de antecedência poxa!
Olhei em volta e meu apartamento estava uma zona. E os armários e a geladeira, quase vazios. Que desânimo!
Pelo menos não ia tropeçar mais naquela mala enorme...


AL/2009

Força

Força é querer
Querer é poder
Poder é domínio
Domínio é morte

Força é energia
Energia é fazer
Fazer é entrega
Entrega é amor


AL/2006

Dvořák - The Cunning Peasant Overture

Afogados

Se soubesse o que queria
Te diria entre palavras
De difícil entendimento
Para ver-te afogando
Nos meus desejos castos
Sem salvação

AL/2008

Scriabin – Feuillet D’Album, Op.58

Momentos

Olhei para traz e vi o ontem congelado na minha memória esperando para ser absorvido no meu âmago sedento de sentido.
Sorri saudosa, chorei doída. Corri assustada pelo tempo que já queria levar tudo na mala do esquecimento. Salvei o que queria e entreguei o resto. O tempo consumiu agradecido.
Subi decidida no topo da pretensão tentando avistar o amanhã que zombava escondido num poço de possibilidades onde eu jamais o descobriria.
Sorri atrevida, corri teimosa. Chorei desolada por não poder alcançar o que ainda nem existia. Adormeci rendida e sonhei com o inevitável.
Acordei e o hoje me conduziu sabiamente pelo caminho onde os meus olhos iludidos antes não conseguiam enxergar, e entreguei-me enfim aos momentos com a intensidade que a vida merece. Sorri, chorei e não corri.


AL/2006

Schumann – Variations posthumes

Haicai

Fruto esquecido
Cai apodrecido
No chão

AL/2008

Longe


Longe é onde o sonho dura
A dor madura e a visão apura
Longe é onde o tempo dorme
Esperando acontecer
Longe é onde a alma chora
Quando quer desfalecer
Longe é onde o pensamento
Cria asas pra viver
Longe é onde quero ser

AL/2007

Ravel - Jeux D´Eau

www.qualquercoisa.com

Página, tela cheia
Pisca ruidosa multicolorida
E as palavras exibidas
Despencam amontoadas
Tropeçando entre imagens
Esgotadas de apontar
Se ao mundo ainda importa
Essa mesma qualquer coisa
Nunca antes procurada
De maneira tão abrupta
Que sequer cabe no tempo
O sentido de existir

AL/2008

Alkan - Sonatine for Piano, Op. 61

Parece que me fui


Dentro de algumas horas partirá o trem e eu continuo aqui deitado na grama aparada da praça em frente à estação. Faz muito calor. Tiro a camisa deixando à mostra as tantas tatuagens que fiz. O tigre, o punho fechado, a flor de lótus, um coração com asas. Não me lembro exatamente quando nem por que razão as escolhi. Tão pouco importa. Aliás, pouca coisa importa nesse momento. Nem mesmo as pessoas que passam e olham deixando no ar um “algo” que lhes provoco.
Escuto música no ipod e miro concentrado o céu vasto e luminoso que se esparrama acima da minha cabeça vazia. Nuvens pairam indiferentes enquanto a vida segue outro rumo.
O sol pinta minha pele desbotada e transpiro exalando um cheiro forte de álcool e tabaco, resquícios de uma noite mal dormida.
Descanso a cabeça na mochila estufada. Na pressa, a falta de costume parece ainda mais estúpida. Há muito tempo não sei o que é dobrar roupas e preparar malas. Empurrei mochila adentro o que estava à vista nas prateleiras do minúsculo guarda-roupa compartido com Tereza. O que ficou deixei pra traz como tantas outras coisas. Quem sabe um dia eu volte para buscar ou ela me envia por correio escorregando nos cuidados.
Mensagens entram no celular que vibra no bolso do meu jeans surrado. Não quero lê-las. É tarde demais para trocar palavras sem rima.
Há cinco anos conheci Tereza num cyber café enquanto esperava minha vez para usar o computador. Lia e respondia absorvida uma enxurrada de e-mails. Às vezes deixava escapar um riso alto e aproveitava para dar uma tragada no cigarro que se consumia no cinzeiro de plástico. Tinha os cabelos cacheados amarrados com um cordão de sapatos e um vestido praieiro bem folgado que disfarçava suas formas quase perfeitas. As pernas largas cruzadas na cadeira e as sandálias abandonadas debaixo da mesa. Bebia chá gelado com limão e tinha no pescoço uma borboleta tatuada. Da bolsa semi-aberta brotavam livros, cadernos e apostilas rabiscadas.
Tudo aconteceu muito rápido. Frases trocadas, coincidências óbvias, interesses descobertos e pronto. Lá estávamos nós buscando apartamento para dividir as despesas e a vida naquela cidade estrangeira.
Desde o começo nossas diferenças vinham estampadas, mas a gente parecia se divertir com isso.
Tereza é livre, breve e solta. Decidida, prática, ordenada sem ser obsessiva, e muito criativa. Odeia cozinhar. Meus dons culinários foram decisivos para seduzi-la.
Estuda sociologia ao mesmo tempo em que faz cursos de Yoga e terapias alternativas para manter- se em equilíbrio. Consulta tarô, runas, búzios, horóscopos e tudo que lhe aparece pela frente. Mas diz que é só por curiosidade. Sabe muito bem que as respostas estão todas, dentro dela mesma. E eu finjo acreditar... Para sobreviver, dá aulas particulares de espanhol.
Se Tereza fosse música, seu refrão seria liberdade.
Eu talvez seja o avesso. Penso pouco. Não rasgo tempo. E não me preocupa se a vida traz sentido em cada movimento. Estudo direito e trabalho à noite em um restaurante famoso como ajudante de cozinheiro. Sou criativo mas pouco prático. A desordem que faço não é nada diante da que sinto adentro, mas vivo muito bem com as duas.
Liberdade pra mim é uma palavra extremamente bonita que combina melhor com os animais. Eu gosto mesmo é de estar agarrado às minhas coisas, aos meus amigos e aos que amo. Gosto de companhia, de compartir. Estar sozinho é entediante, triste e improdutivo. Por isso colei em Tereza.
Arrisco mesmo a dizer que a gente se divertiu muito. Até mesmo quando a convivência diária parecia um velho disco arranhado.
Quando fui apresentado à sua família, gostei muito daquele estilo cuidado tribal que tinham e que à Tereza tanto lhe sufocava.
Minha família por outro lado, segue ainda o modelo colcha de retalhos. Unidos por partes que nos sobram.
Famílias à parte dão lugar a amadurecimento. No exílio, separação não sugere abandono e distância passa a ser a maior aliada dos vínculos.
Depois de três anos juntos, Tereza começou a falar em ter filhos. Primeiro em tom de brincadeira, depois com insistência. Fui vago. Não dizia nem sim nem não. Simplesmente empurrava o assunto pra debaixo do tapete. Até que um dia, Tereza engravidou, por descuido, disse ela, mas eu não acreditei. Senti-me traído, ignorado e estúpido.
Ela sentiu-se muito pior, acredito. E sei que nunca me perdoou quando teve de fazer o aborto. Daquela vez escolhera a mim.
Seguimos nossa vida como se nada tivesse acontecido, mas esse nada foi crescendo como um monstro nas profundezas.
Cicatrizes mal curadas revolvem e terminam instalando uma distância inexplicável.
Busquei aventuras, vícios acompanhados, ausências torturantes, solidão amedrontada.
Tereza endureceu assim que entendeu o jogo infantil onde eu sempre vencia roubando os resultados. Iludido eu segui e já nem sabia quem era Tereza.
Ontem o monstro saiu desatinado de dentro de mim. Gritou, soltou fogo, destruiu e quase matou Tereza e o outro filho gerado enquanto eu jogava.
Tereza venceu e dessa vez não fui o escolhido. Salvou a cria.
E eu...
Parece que me fui.

AL/2008

Hiato

Nesse espaço definido
Onde o tom é tão preciso
Dura o tempo procurando
O pedaço compartido
Quando volta ajustado
Ao lugar já combinado
O andamento sai perfeito
Com o canto separado
Quando falha o intervalo
Entre o dito e o entendido
Uma fenda vai-se abrindo
Esquecendo o sentido
Mas as partes se conhecem
No que vive diferente
E devolve a completude
No momento mais presente

AL/2007

Beethoven -Violin Sonata No.5, Op. 24 "Spring"

Faz de conta

Faz de conta
Que o tempo espera
Que a razão descubra
O que o impulso gera

Faz de conta
Que o mundo entende
Que o homem acolhe
O que ainda sente

Faz de conta
Que a distância é curta
Que a saudade é branda
E que o amor madura

Faz de conta
Que a mente inventa
Que o poeta escreve
Que a palavra sustenta

Faz de conta
Que a vida dura
Que a alma voa
E que o Ser perdura

AL/2007

Schubert - Fantasie in F minor for Piano Four Hands, D940

Haicai

Na mesa posta
Falta um prato
E uma vida

AL/2008

A dor do mundo

A minha dor já não é minha
Ou não será minha a minha dor
A dor que ora tenho reconheço
E a minha ainda não chegou
Se foi com outro que como eu
Sofre sempre a mesma dor
Que não é dele nem minha
É a dor de todo mundo

AL/2007

Eduard Elgar – Enigma (Nimrod): Adagio

Tecendo a noite

E se a vida se for
E eu nem tempo dispor
De cobrir-me com o manto
Que na noite teci
E se o tempo disser
Que não quer mais saber
Do que eu tenho pra dar
Por não crer mais em mim
E se o manto romper
E eu não mais querer
Saber de ti e de mim
No meio da dor
E se a noite durar
Aonde não posso ir
E nada mais restar
Do sonho que vivi

AL/2007

Beethoven: Piano Sonata N014 In C Sharp Minor, Op. 27/2, "Moonlight" - 1. Adagio Sostenuto

Coisa estranha


Gente é coisa muito estranha
Não sei muito que dizer
Quando ama faz sofrer
Quando sofre diz que é manha
Escondida no que sente
Revelada no que trama
Quase sempre apodrece
Junto à alma que reclama
Se viver fosse mais simples
Pra quem segue a verdade
Muita gente deixaria
A mentira sem vontade
Só que a vida é coisa cara
De difícil entendimento
E o que vale é descobrir
O valor dos sentimentos
Dito isso sigo em frente
Sem saber onde e por que
Afinal de nada serve
A palavra sem viver
E quem sabe lá na frente
Já cansada de buscar
Deixarei a porta aberta
Para a morte me ensinar

AL/2008

Pixinguinha - Carinhoso

Esconderijo

Agarrada às palavras
Sou o que vai escondido
Ente e nada crescendo
Parasita no que digo
E nem mesmo digo algo
Só escrevo o que vivo
E o que vivo nem é digno
De cubrir-se de palavras

AL/2007

Handel: Serse - Ombra Mai Fu

Enganando o tempo


O tempo vai passando ora lento, ora veloz . E ás vezes parece que empaca.
Domina quando esquecido, mas se sabido, também pode ser enganado.
Acompanhe-me sem pressa, a esse curioso vilarejo pendurado com cuidado naquela montanha, com suas minúsculas casas, todas pintadas de cal.
Uma casa pintada de cal, nunca diz o tempo que tem.
A claridade rejuvenesce.
Seguiremos os passos de um camponês que passa assobiando pela estrada com sua velha carroça carregada de mantimentos, puxada por bois que conhecem muito bem o caminho, mas desconhecem totalmente o fim. E isso não muda nada.
A subida é íngreme e perigosa. Certamente impossível num dia de chuva. Mas hoje o dia está quente e seco, e o vento foi soprar em outro lugar.
Por todos os lados flores e ervas aparecem em abundância tentando impedir que as pedras rolem bloqueando o caminho de quem tem um objetivo importante a cumprir. E o camponês chega são e salvo ao pacato vilarejo que sempre o espera sem qualquer ansiedade.
Enquanto descarrega a carroça, devolve cada cumprimento que lhe chega das janelas e portas entreabertas. E quando finalmente termina, descansa o corpo suado na sombra da árvore frondosa que o acolhe todas os dias desde que decidiu viver ali. E isso faz muito, muito tempo. A árvore é testemunha.
Quando finalmente o sol desce a montanha beijando as flores, o povo aparece nas ruas já vestidas de silêncio, pintando no ar a frescura trazida nas faces resguardadas.
O tempo ali passa devagar, respeitando os passos de quem escolheu viver os momentos com o que lhe foi definido.
Quem vive de modo pleno, dispõe do tempo.
Entremos agora em uma casa qualquer. Pode ser a do camponês, já que o estamos seguindo feito sombra.
Parece pequena, mas provê realmente de todo o necessário. Aconchego, proteção e importância.
Nada falta e nada sobra e os que compartem, também promovem. Do mais velho ao pequeno, o respeito permanece, e o amor vai completando o trabalho que o tempo desconhece.
O tempo sempre se curva diante do amor.
Poderíamos passar mais tempo percorrendo cada canto desse vilarejo, conhecendo outras pessoas, como aquele velho que está ali sentado na calçada enrolando e fumando o seu cigarro enquanto traga a vida e solta as lembranças na fumaça. Ou tentando descobrir os segredos daquela jovem viúva de olhos brilhantes que a cada noite comparte seus sonhos com os fantasmas já conhecidos. Ou ainda, aprendendo a negociar com o tempo, alguns anos de inocência, como estão fazendo aquelas crianças brincando de cabra-cega na praça da igreja.
Mas acho que já me demorei o bastante e o tempo está pedindo para passar à minha frente.
A vida quando sabida, consegue enganar o tempo. Mas não por muito tempo...


AL/2007

Sussurro

Vem de dentro
Vem baixinho
Qualquer coisa
Sem ser dita
Som confuso
Água ou vento
Vem de dentro
Vem de dentro
Vai soprando
Vai mexendo
Qualquer coisa
Sem ser dita
Som de agito
Paro ou sigo
Vem de dentro
Vem de dentro

AL/2008

Liszt - Schubert Song Transcriptions – Ständchen from Schwanengesang

Morto vivo

Triste fim o dessa estória
De desejos mal nascidos
Em um homem atormentado
Pela sombra dos castigos

Nem lutou com seu destino
Quando o mesmo apareceu
Armado até os dentes
Com o que ele padeceu

Foi vivendo cada dia
Amarrado ao temor
De encontrar pelo caminho
A razão do seu langor

Mal sabia o coitado
Que nem vida lhe foi dada
Já chegou a esse mundo
Com a morte anunciada

E morreu acompanhado
Pela sombra tão cruel
Que mesmo enterrada
Impedia-lhe ir ao céu


AL/2007

Brahms: Piano Sonata #3 In F Minor, Op. 5

Eco

Impreciso é o som
Que toca cada escala
Baixo, surdo mudo
Forte, brado vivo
Como o som de cada alma
Quando vaga noite e dia
Nas fronteiras de quem fala

AL/2008

Edward Elgar - Pomp & Circumstance March, Opus 39

Mareada

As cores do mar
Guardadas em mim
No espelho reluz
Beleza e magia
Intenso fundo azul
Verdejante calmaria
Virá branca espuma
Aguando a areia
Levando de volta
Meus sentimentos gastos
De tanto mudar

AL/2009

Alkan - Grande Étude, Op. 76, No. 3 –Mouvement semblable et perpétuel - Étude pour les mains réunies

Carnaval


Olho para o relógio e ele me confirma a hora de sair. Sou um dos poucos ainda trabalhando na tarde de uma sexta-feira véspera de carnaval.
Fecho minha gaveta, apago o computador e me despeço dos que insistem no trabalho enquanto o resto da cidade já arde em festa.
No caminho para casa um vai-e-vem de carros, trios, ambulantes, policiais, e foliões com seus abadás coloridos... Música por toda parte, alta , muito alta. E isso era só o começo...
Tomo um banho demorado, como os restos de comida da geladeira, bebo uma cerveja bem gelada escutando notícias distantes na televisão.
Visto meu abadá, uma bermuda folgada com a cueca aparecendo, o tênis novo comprado em seis prestações. Coloco algum dinheiro na meia, fotocópia do documento no bolso e saio com uma latinha de cerveja na mão.
Vou andando sem pressa até o local onde combinei encontrar a turma.
Apesar da crescente agitação ainda era possível caminhar pelas ruas e identificar as pessoas. E foi aí que vi Madalena encostada em um carrinho de cachorro-quente amarrando o cordão do tênis.
Toquei levemente no seu ombro e ela virou surpresa. Deu-me um beijo como quem não quer nada e começou a fazer-me um monte de perguntas tolas. Respondi sem prestar muita atenção já que todo o meu corpo estava concentrado em disfarçar o meu desejo latente.
Madalena trabalha de garçonete no restaurante que eu freqüento ao meio dia.Normalmente trocamos poucas palavras e muitos olhares...Hoje poderá ser diferente, caso algum santo ajude.
Ofereci uma cerveja e ela aceitou. Nesse instante escutamos o som do trio que se aproximava acompanhado de uma multidão enlouquecida dançando, pulando, cantando, gritando, se agarrando, se espremendo, se empurrando, sem queixas.
Aproveitamos para misturar-nos àquela onda de gente suada, despejando nas ruas as emoções contidas.
Se as horas passaram , a gente não sabia. Se ainda era noite ou se já era dia. Nem onde a gente estava e muito menos aonde ia.
Só sei que acordei colado em Madalena em uma praia qualquer onde muitos descansavam da loucura do outro dia.
Toquei seus lábios dourados sentindo o gosto da despedida e voltei para casa caminhando entre outras vidas desconhecidas, como a minha e a de Madalena.

AL/2008

Valores

Raras são as horas
Raros os motivos
Raros os sorrisos
De importância rara

Poucas as pessoas
Poucos os sentidos
Poucos bem vividos
De importância cara

Vago o apego
Vagas as memórias
Vagas as palavras
De importância rara

Falha os encontros
Falhas são gravadas
Falha a entrega
De importância cara

AL/2007

Colibri

Paira no ar
Destreza
Rara beleza
Luminosa
Mergulha afoita
Curiosa
De doçura
Se lambuza
Beija a flor
Vem alegria
Beija a flor
Alarga a paz
Beija a flor
Espalha amor



Planea en el aire
Destreza
Rara belleza
Luminosa
Sumerge con prisa
Curiosa
De dulzura
Se embadurna
Besa la flor
Ven alegría
Besa la flor
Alarga la paz
Besa la flor
Esparcía el amor

AL/2008

Beethoven - Violin Sonata No. 5 in F Major, Op. 24 "Spring"