Fantasia

Bailam nuvens em noite extensa
Crenças
Todas tão propensas
Caem estrelas e adormeço
Esqueço
Enroladas folhas frescas
Sonhos cheios de beleza
Certeza
Feito água presa
Aquece e sobe aos ceus

AL/2010

Villa-Lobos – Bachianas n° 6 - II. Fantasia: Allegro

O conto mentiroso

A hora vem chegando. A barriga crescida e redonda adverte que a menina esta pronta para viver o seu caminho riscado e riscando.
Olga, a mãe que nunca deu a luz, se prepara para receber a filha com a receita mal dosada de medo e felicidade.
Reuniu, nas horas condensadas de afeto, um pequeno enxoval de cores claras e peças simples cheirando a alfazema, na medida em que os dias evaporavam na cadência dos seus desejos.
Pouca idade lhe colava ao corpo amadurecido nas mãos do homem que um dia entregou-se absolvida entre o que sentia e o que ignorava. E tão bruscamente foi despertada que não teve tempo para guardar na memória seus anseios ingênuos.
Desde então habituada aos destemperos, nutriu-se de muita coragem e alguma destreza para enfrentar o restrito mundo que lhe valia.
Agora seguiria apenas ela e sua filha, ainda escondida no ventre estirado, na tentativa de delongar o tempo do cuidado e do aconchego.
Mas a pele tem tamanho e o ventre vida própria. E a menina muita fome. Então ela luta, chuta, empurra e sofre por querer o que lhe cabe.
Na sala apertada do hospital sem recursos, os gritos se misturam ao movimento convulso dos médicos e enfermeiras cheirando a éter e a cansaço.
Não há flores, palavras doces, sorrisos ou afagos. Há vida, morte, destino, e caminhos atravancados.
A mãe assustada grita de uma só vez tudo o que leva adentro. Reúne sopro e expulsa dor, sangue e a menina enrugada pelo frio que acompanha aquela sala imprópria a qualquer vida.
Essa logo explode em pranto a fome de engolir o mundo, por hora sossegada no leite ralo que escorre do seio daquela sua mãe impedida de enxergar a própria pena.
Mãe e filha se estranham como pacto para seguirem juntas. E o nome se faz carne. E a alma acolhe Maria Inês como sua.

cont...

Maria Inês adolesce na dimensão dos seus riscos largos, fortes e destemidos. Vasculha curiosa o mundo herdado e logo descobre o pobre que é. Salta etapas e toma para si o trabalho de viver.
Fala pouco enquanto cresce e encontra no mistério a arma adequada para quem é insaciável. O alimento que lhe falta na mesa, nunca lhe faltará na mente.
No acanhado quarto que divide com a mãe ausente por tanta labuta, pouca coisa compromete o espaço de brincar com seus amigos inventados. Um sapo bailarino e uma barata professora.
É o sapo que lhe mostra uma e outra vez, velhos truques para conseguir o salto mais elevado e preciso com movimentos leves e graciosos. Ela aprende sem dificuldade e exibe-se diante dos vizinhos, na rua estreita e cheia de buracos.
A barata convencida, passa rastejando metendo-se por todos os cantos, recolhendo o que lhe cabe na cabeça. Uma verdadeira enciclopédia ambulante pronta para enfrentar qualquer batalha mesmo correndo o risco de ser esmagada de repente. Maria Inês se diverte, e os admira e os protege como um tesouro raro. Fora do seu quarto, na miséria acumulada pelas horas parcas de alegria, faz poucos amigos verdadeiros.
Segue acelerada e ingressa por fim ao colégio buscando curiosa nos livros e nas letras, o mundo imaginado.
Olga, trabalhando noite e dia sem queixa, não se entrega, e até planeja momentos de intimidade com a filha que não vê crescer.
A realidade se desveste sem pudor à Maria Inês e o seu sonho vai ficando cada vez mais comprometido. Uma nuvem estranha encobre seus pensamentos, confundindo-a. E antes de se ver paralisada por uma dor que teima em crescer, ela decide lutar com a bravura que tinha escondida.
Numa tarde de domingo enquanto assistia televisão e comia restos de comida trazidos pela mãe do restaurante onde trabalhava, saltou de cabeça na primeira oportunidade que bateu à sua porta.
A vida de Maria Inês começava pra valer com um conto mentiroso.

cont...

Era um programa de calouros daqueles típicos das entediantes tardes de domingo.
O apresentador de voz sedutora e postura arrogante, entrevistava os candidatos sem nenhum escrúpulo antes da apresentação já comprometida dos mesmos. E assim seguia por horas a fio naquela exibição de talentos e vexames invocando o interesse mesquinho e as fantasias tolas dos telespectadores.
Maria Inês não escapou. Decidiu naquele mesmo instante que iria ser famosa vencendo aquele concurso.
Primeiro pensou em levar ao público, seus amigos raros, o sapo e a barata, para uma apresentação. Mas felizmente temeu por suas vidas, já tão cheia de riscos.
Então, sem pestanejar pôs-se a elaborar ela mesma sua apresentação, tentando reunir o que havia aprendido.
Começou por escrever um conto que representaria nos três minutos de que dispunha do programa.
Por dias emendou palavras gastando sem pesar folhas e folhas do seu caderno de matemática criando um personagem tão vivo que começou a duvidar da sua própria existência.
Maria Inês transformara-se em uma atriz completa, filha de um piloto e de uma jornalista que viajavam muito a trabalho deixando-a aos excessivos cuidados de uma tia solteirona emprestada.
Mais tarde pensaria em uma forma de convencer Olga a compactuar dessa vida inventada...
Quando já estava com tudo pronto e ensaiado, procurou ajuda de uma vizinha para fazer sua inscrição junto à organização do programa.
Passou muitas noites em claro enfrentando a ansiedade enquanto esperava por alguma resposta.
Somente depois de três semanas foi finalmente confirmada sua participação para a seleção dos dez melhores candidatos.
Agora teria de contar tudo a Olga e rezar para que ela concordasse em apoiar a sua loucura.
Conseguiu, quando de um golpe certeiro, lembrou à mãe de que era melhor arriscar do que seguir em conformidade. Não tinham realmente nada a perder.
Na data marcada levantaram bem cedo e depois de enganar o estômago com o que nem queriam, saíram de casa levando numa sacola velha a fantasia que Maria Inês, sem saber, usaria até o último dia da sua vida.
Tomaram três ônibus abarrotados de gente até chegarem ao estúdio de gravação.

cont...

Maria Inês fez todo o percurso sonhando o novo enquanto olhava pela janela suja, a vida que logo iria abandonar.
Chegando à recepção Olga preencheu metade do formulário com dados falsos. Esperaram horas até que lhes serviram um lanchinho e lhes ofereceram uma pequena sala onde Maria Inês pudesse ser preparada para a apresentação.
Uma senhora de voz estridente e cabelo de espantalho moderno, apareceu por fim para acompanhá-las ao palco não sem antes repetir mil e uma recomendações totalmente desnecessárias já que ninguém a escutava. O nervoso era intenso e contagiante como toda praga exterminadora.
Mas para admiração de todos, Maria Inês foi a única que ao entrar no palco parecia estar em sua própria casa, ou melhor, futura casa.
Pensou nos seus amigos, o sapo e a barata. Como estariam orgulhosos dela nesse momento!
Respondeu com firmeza todas as perguntas ridículas do apresentador e, quando esse se satisfez, deu-lhe o sinal para começar.
Maria Inês olhou tudo e todos à sua volta, repirou fundo e começou o seu conto.
Enquanto dançava e gesticulava ao som da sua própria voz, as palavras inventadas iam impregnando e riscando o palco com o seu personagem.
Ao final de três exatos minutos, o seu conto já era realidade e as pessoas ali presentes custaram a acrditar no que acabavam de ver. Até a própria Olga estava hipnotizada pela criação da filha.
O apresentador e os organizadores imediatamente começaram a tomar as providências para ter a participação da garota no programa daquela mesma tarde.
Foi um alvoroço, pois não é sempre que uma oportunidade assim aparece para “enriquecer” um programa medíocre de domingo.
As atenções foram redobradas. Paparicos e mimos despejados por todos os lados. Comidas, bebidas, chocolates, maquiagem, penteado e até fotos! Era a glória... Maria Inês sabia. Sempre soube.

cont...

Na chamada do programa foi anunciada uma atração especial. Um verdadeiro talento descoberto pelos organizadores. Uma artista completa e autêntica.
Antes fizeram Olga assinar um contrato de exclusividade em troca de uma quantia, para elas, transformadora.
Mãe e filha poderiam agora compartilhar uma vida de conforto, sucesso e felicidade. Parecia sonho. Mas era a pura realidade, que às vezes nos faz também flutuar.
Maria Inês ocupou quase metade do tempo do programa com sua inebriante apresentação não sem antes passar pelo interrogatório desconcertante do apresentador estrela decadente.
Ao final, o sucesso tinha realmente um lugar seguro. Acabava de surgir ali, uma magnífica estrela cintilante que nem os holofotes e flashes das câmeras conseguiam ofuscar.
Entrevistas e combinações se intercalaram até o começo da noite quando finalmente permitiram que mãe e filha fossem descansar. O dia seguinte seria ainda mais cansativo.
Voltaram para a sala onde antes tinham sido preparadas, abraçadas e envolvidas por uma nuvem de sonhos bons. Mãe e filha já não se estranhavam. E o pacto da dor foi rapidamente desfeito.
Foi ai que o destino apareceu para arrematar o conto com um pouco de verdade.
Um curto-circuito sem aparente importância transformou em poucos instantes, todo aquele estúdio e os que ali estavam em pura cinza. Um fogo abrasador e uma fumaça sufocante não permitiram que Maria Inês e Olga continuassem aquele conto.
Por dias ainda se ouviu nos meios de comunicação divagações sobre a tragédia que havia adiantado a morte de tantas pessoas. Mas nada causou mais revolta que o triste fim de Maria Inês.
Na realidade o que comovia e entristecia as pessoas era o fim do sonho não vivido nelas mesmas, porque Maria Inês essa sim viveu o dela o quanto durou.
Se existe qualquer coisa de bom na morte, deve ser o que ela nos faz refletir sobre a vida.
E se a morte é realmente transformação... Chapeau Maria Inês!


AL/2008

Desmame

Crescido em ventre terno
De amor amamentado
O seio fazendo o elo
Que logo será trocado
Consolo vem escondido
Alívio acompanhado
Dormir regado em lágrimas
Do que foi abandonado
O olhar em criatura
O cheiro mais apurado
Da perda nem agonia
Renasce segura e forte
A liga de cada lado

AL/2008

Kuhlau - Duo brillant, Op. 110, No. 1: Allegro non tanto