Fuga

Evade a vida
Cuidadosamente
Escolhida

E dribla a isca
Satisfeita
Viva!

AL/2009

Ravel - Le Tombeau de Couperin: II Fugue

Indizível

Naquele rio cambiante
Vi passar a calmaria
Nas velas que deslizavam
Sem rumo, sem revelia
O céu azul mirava
O vento mal dizia
Se canto, pinto ou conto
De nada valeria
Bebe ó alma e se cala
Idéia mais passageira
Devolve aquilo que roubas
Ao rio que em ti vagueia

AL/2009

Mendelssohn - Venetian Gondola Song Op 30 No 6

Inocência

Afina a pele
Doce descoberta
Desnuda a alma
E enaltece
Seu pudor

AL/2009

Yamandu Costa - Chamamé

Ensaio sobre a loucura

Em maio completei 41 anos. Fiz uma festa em casa para alguns amigos e conhecidos. Na verdade mais conhecidos que amigos. E uns tantos que eu nem conhecia.
Naquela noite eu estava realmente linda e atraente, apesar de ter a mente dispersa como de costume. Prova disso é que não lembro muito dos detalhes. Recordo apenas que as pessoas pareciam se divertir, que a comida estava boa e a música também. E que todos foram embora quase ao mesmo tempo. Depois ficou aquele imenso vazio que normalmente vem acompanhado de uma dor profunda. Para suportar tomei as sobras das bebidas e me recostei no divã em frente à janela com a vista fixa na lua minguante até adormecer. No dia seguinte acordei com a campainha tocando insistentemente. Era Graça que vinha para limpar a casa e ordenar o caos. Antes de começar, preparou-me um café forte e ajudou-me a tomar banho e escolher uma roupa adequada para ir trabalhar. Há momentos que sem Graça, fico perdida.
Meus dias costumam se arrastar nebulosos e sem muito sentido. Como um livro chato em que as palavras se perdem manchando as folhas sem emoção. Minha cabeça pesa meu mau humor e meu corpo o veste totalmente.
A dor se alarga, toma espaço, ao ponto de eu ser ela encarnada. Já não vejo alma e o que faço me abomina. Um dia grito, brinco, canto, e lembro. Noutro choro, emudeço, entorpeço e fomento.
Hoje vou vestida em cores fortes e prenderei os cabelos num coque alto esticando a pele e os olhos já borrados de rímel. Mostro a cara que invento, por não saber mais quem sou. Se for alegre causo espanto, e se vou triste sou incomodo.
Não vi Graça esta manhã. Estará escondida na esquina esperando que eu saia para poder entrar. Reconheço que a cada dia que passa tem mais medo dos meus ataques e não a culpo. Também estou apavorada com o que sai de mim. Encontrará a desordem de sempre e o espelho do banheiro riscado de lápis preto e batom carmim. Registro ali o pouco que vejo e saio com outra cara. Graça entende tudo e apaga...
Gosto de caminhar rápido zigzageando nas calçadas como se estivesse atrasada. Vou esbarrando de propósito nas pessoas e depois peço desculpas exibindo meu melhor sorriso falso. Às vezes finjo discutir com alguém no celular e aproveito para gritar nas ruas os meus tormentos. Talvez esteja mesmo ficando louca. Não sei se vivo do que sou e não sinto, ou sou o que sinto e não vivo.
São tantos os pensamentos que invadem minha mente e metralham meus sentidos... Meu corpo envelhece sem suportar a carga dos meus desejos e desfilo de dia os pesadelos que costuro na noite.

cont...

Cheguei pontual ao Teatro Municipal e em poucos instantes toda a produção já estava ao meu redor. Paparicam-me com exagero e eu aproveito. Para aturar todo um dia de ensaios e repetições vale até mesmo sucumbir às atenções mais duvidosas.
Repassamos a ária Ombra mai fù à exaustão. Fico enlouquecida quando um Maestro insiste em não respeitar um convidado e então provoco de todas as maneiras possíveis. Se preciso for, improviso uma cena e nem volto para ensaiar. E se a raiva me domina cancelo e pronto. Hoje decidi ficar em solidariedade aos pobres músicos entregues a esse Maestro onipotente. Dum mergulho solitário faziam submergir os mais raros sentimentos colados em som difuso. Cantei divagando nas palavras sem controle e fui sendo levada pela melodia a uma distância difícil de regressar. Um lugar sublime quiçá próximo ao que se espera da eternidade.
Terminamos o ensaio tarde da noite e eu, além de faminta estava muito excitada. Saí com o grupo para jantar e joguei com as palavras noite adentro. Enquanto falava, bebia e fumava sem me preocupar com as conseqüências. A propósito... Nunca cuidei da minha voz.
Um jovem violoncelista me fez chorar de rir com sua coleção interminável de piadas tolas sobre elefantes. Invejo as pessoas que sabem cavar sorrisos. Quando eu era criança dizia a todos que iria ser palhaça. Que viajaria em um grande circo voador sobrevoando todos os lugares do mundo e pousando naqueles onde a alegria por tempos não reinava. Hoje nem de criança eu gosto. Irrita-me tanta inocência.
Preciso voltar pra casa. Já não tenho idéia do que digo e minha cabeça dá voltas misturando no espaço, caras e fantasmas.
Peço um taxi e não aceito companhia. No caminho, enquanto cruzávamos a ponte tive vontade de abrir a porta, sair correndo e saltar ao infinito. Mas como algumas vezes sucede, os impulsos duram menos que o tempo necessário para que o cérebro entenda e cumpra. Um dia espero poder reverter essa ordem.
Acho que o motorista percebeu alguma coisa porque não parou de me olhar pelo retrovisor. De repente ligou o rádio e perguntou se eu gostava de música clássica. Soltei algo parecido a um resmungo e ele imediatamente desligou pedindo desculpas. Fiz de conta que não entendi e fechei os olhos. Para compensar minha hostilidade deixei-lhe uma boa gorjeta. Agradeceu confuso e quis saber se eu estava bem. Com um sorriso irônico dei-lhe as costas e boa noite ao mesmo tempo.
É impressionante como algumas pessoas totalmente desconhecidas tem essa capacidade de ver através... Desorientada acabo levantando um muro ainda mais espesso.

cont...

Subi os três lances de escada tentando não fazer muito ruído e depois de abrir com muita dificuldade os três ferrolhos da porta, entrei sem desligar o alarme. Uma sirene escandalosa ecoou e não consegui lembrar a seqüência dos três números para calá-la. Como invasores, zelador e vizinhos se amontoaram diante da minha porta golpeando e gritando pelo meu nome.
No desespero, tropecei numa cadeira e bati a cabeça na quina da mesa de jantar. Não tenho a mínima idéia do que aconteceu depois.
Acordei com Graça ao meu lado mais esquisita que nunca. Não me deixava fazer nada, e o que era pior, entre um suco e uma sopa, me dopava com um coquetel de comprimidos.
De repente saltei da cama desesperada. A estréia! O teatro, os músicos, o público! A mídia... Essa teria um prato cheio... Sensacionalismo por no mínimo um mês. E a louca sempre sou eu!
Graça se instalou em casa cuidando do meu ferimento e de mim. Seu medo parecia diminuir diante da minha demência. Sem outra saída, comecei a ludibriá-la. Fingia engolir os remédios e depois jogava tudo na privada. Também fingia dormir quando chegava o tal psiquiatra. Para que conversar com quem não te entende? Do que quer me curar? Meus devaneios são minha salvação e minha voz, mesmo descuidada, uma sólida ponte com o outro mundo. Acreditem, “quem canta seus males espanta”!
Minha dedicada acompanhante não sai mais do meu pé. Insiste em trazer livros, revistas e filmes para me ocupar, mas eu não consigo manter a mente concentrada por muito tempo nessas tolices. Se queixa que eu como pouco e sai inventando cardápios extravagantes para me seduzir. De pena, acabo engolindo uns bocados.
De vez em quando ainda canto. Canto e fujo rápido da platéia e dos holofotes. Durmo muito de dia e vagueio à noite aproveitando as ruas vazias e silenciosas cobertas pela umidade que deixa no ar um cheiro azedo de coisa consumida. Os fantasmas se multiplicam e agora sou um deles. Voltei a assustar e a viver do que invento e é.
Graça entende tudo e apaga...


AL/2009

Realidade

A realidade
Passa lentamente
Enquanto a vida pulsa
E invade
A terra árida

AL/2009

Dvořák: Cello Concerto In B Minor, Op. 104, B 191