Dom Quixote


Sou cavalheiro andante
Solitário vagabundo
Das estradas inventadas
Trago arma e armadura
Como quem não quer ver nada
Minha força é criação
Criatura é coisa errada
Minha fome é saciada
Em qualquer noite estrelada
De conquistas vou vivendo
Sem sequer levar medalhas
Porque nunca entendidas
Quase sempre renegadas
Abandono não tem cura
Mas sonhar aquece a alma
Desse nobre guerrilheiro
Feito de tudo e de nada
Sempre pronto a ajudar
Mesmo ferido de raiva
Da morte não tenho medo
Por isso vivo e perduro
Mesmo se louco figuro
Louco é outro que morre
Sem mesmo travar batalha


AL/2008


Josef Suk - Elegie (Under the Impression of Zeyer's Vysehrad), Op.23

Frida

A dor que da pele trava o corpo
Encontra adentro a outra dor
Que sai bailando em gritos loucos
Ou em outros gritos de cor
De gestos, versos e sons
Cheios de males entendidos
Retrato cru e estampado
Da alma que nunca foi retida
Por tropeçar no caminho
E soltar forte e brava
A sua dor contida


AL/2007

A música que toca

Domina
Recria
Mi alma
Falaz
Solfejando
La distante
Sinais
Dormidos
Sinônimos
Latentes
Soltos
Face
Mi vida
Re vista
Docemente


AL/2008

Brahms - Romanze In F Major

O diário



É Natal e ao pé da arvore enfeitada com doces coloridos, os presentes luzem enrolados em papeis brilhosos e fitas de seda. Entre eles, um com o meu nome bem grande preenchendo a etiqueta.
Impossível colar nas palavras a emoção sentida ao rasgar o papel e tocar a capa dura azul celeste onde se lia Meu diário, em lindas letras prateadas.
Eufórica, contei as páginas que desfilavam alvas mareando meus olhos afortunados. Eram muitas e todas exalavam ainda o cheiro forte de madeira e o calor típico das coisas queridas.
No canto direito uma nuvem pequena oferecia lugar aos números que marcariam para sempre um dia já vivido. Logo abaixo linhas se seguiam em abundância como ruas aparando as letras que apressadas passariam desenhando sentimentos e segredos nunca antes despejados.
Se o dia fosse lindo, mais espaço usaria procurando alongar os eventos. E se acaso não valia, economizaria páginas, palavras, tinta e linhas.
Das pessoas pintaria expressões bem definidas e depois decomporia cada uma em separado, assim como se separa as sílabas de uma palavra entendida. Algumas certamente vão roubar mais tempo e espaço sem que eu perceba.
Sentimentos são segredos e o diário é que bem sabe. Por isso espera paciente escondido baixo chave no fundo de uma gaveta, enquanto vivo os meus tempos.
Se um dia é esquecido, não insiste e quieto permanece. Se em outro chego afoita e invadida de imagens, me acolhe amoldando as páginas. E confiada, deixo os meus momentos enfeitados com palavras de todos os tamanhos.
O que risco não é conto, é mesmo página desse meu diário escrita em vinte e cinco de dezembro de mil novecentos e setenta e três. Primeira de tantas outras asiladas nessa capa dura azul celeste que um dia desbotará como o tempo e a memória.
Boa noite e até amanhã, se o dia chegar e se com ele eu estiver.


AL/2008