Subi os três lances de escada tentando não fazer muito ruído e depois de abrir com muita dificuldade os três ferrolhos da porta, entrei sem desligar o alarme. Uma sirene escandalosa ecoou e não consegui lembrar a seqüência dos três números para calá-la. Como invasores, zelador e vizinhos se amontoaram diante da minha porta golpeando e gritando pelo meu nome.
No desespero, tropecei numa cadeira e bati a cabeça na quina da mesa de jantar. Não tenho a mínima idéia do que aconteceu depois.
Acordei com Graça ao meu lado mais esquisita que nunca. Não me deixava fazer nada, e o que era pior, entre um suco e uma sopa, me dopava com um coquetel de comprimidos.
De repente saltei da cama desesperada. A estréia! O teatro, os músicos, o público! A mídia... Essa teria um prato cheio... Sensacionalismo por no mínimo um mês. E a louca sempre sou eu!
Graça se instalou em casa cuidando do meu ferimento e de mim. Seu medo parecia diminuir diante da minha demência. Sem outra saída, comecei a ludibriá-la. Fingia engolir os remédios e depois jogava tudo na privada. Também fingia dormir quando chegava o tal psiquiatra. Para que conversar com quem não te entende? Do que quer me curar? Meus devaneios são minha salvação e minha voz, mesmo descuidada, uma sólida ponte com o outro mundo. Acreditem, “quem canta seus males espanta”!
Minha dedicada acompanhante não sai mais do meu pé. Insiste em trazer livros, revistas e filmes para me ocupar, mas eu não consigo manter a mente concentrada por muito tempo nessas tolices. Se queixa que eu como pouco e sai inventando cardápios extravagantes para me seduzir. De pena, acabo engolindo uns bocados.
De vez em quando ainda canto. Canto e fujo rápido da platéia e dos holofotes. Durmo muito de dia e vagueio à noite aproveitando as ruas vazias e silenciosas cobertas pela umidade que deixa no ar um cheiro azedo de coisa consumida. Os fantasmas se multiplicam e agora sou um deles. Voltei a assustar e a viver do que invento e é.
Graça entende tudo e apaga...
AL/2009