Cheguei pontual ao Teatro Municipal e em poucos instantes toda a produção já estava ao meu redor. Paparicam-me com exagero e eu aproveito. Para aturar todo um dia de ensaios e repetições vale até mesmo sucumbir às atenções mais duvidosas.
Repassamos a ária Ombra mai fù à exaustão. Fico enlouquecida quando um Maestro insiste em não respeitar um convidado e então provoco de todas as maneiras possíveis. Se preciso for, improviso uma cena e nem volto para ensaiar. E se a raiva me domina cancelo e pronto. Hoje decidi ficar em solidariedade aos pobres músicos entregues a esse Maestro onipotente. Dum mergulho solitário faziam submergir os mais raros sentimentos colados em som difuso. Cantei divagando nas palavras sem controle e fui sendo levada pela melodia a uma distância difícil de regressar. Um lugar sublime quiçá próximo ao que se espera da eternidade.
Terminamos o ensaio tarde da noite e eu, além de faminta estava muito excitada. Saí com o grupo para jantar e joguei com as palavras noite adentro. Enquanto falava, bebia e fumava sem me preocupar com as conseqüências. A propósito... Nunca cuidei da minha voz.
Um jovem violoncelista me fez chorar de rir com sua coleção interminável de piadas tolas sobre elefantes. Invejo as pessoas que sabem cavar sorrisos. Quando eu era criança dizia a todos que iria ser palhaça. Que viajaria em um grande circo voador sobrevoando todos os lugares do mundo e pousando naqueles onde a alegria por tempos não reinava. Hoje nem de criança eu gosto. Irrita-me tanta inocência.
Preciso voltar pra casa. Já não tenho idéia do que digo e minha cabeça dá voltas misturando no espaço, caras e fantasmas.
Peço um taxi e não aceito companhia. No caminho, enquanto cruzávamos a ponte tive vontade de abrir a porta, sair correndo e saltar ao infinito. Mas como algumas vezes sucede, os impulsos duram menos que o tempo necessário para que o cérebro entenda e cumpra. Um dia espero poder reverter essa ordem.
Acho que o motorista percebeu alguma coisa porque não parou de me olhar pelo retrovisor. De repente ligou o rádio e perguntou se eu gostava de música clássica. Soltei algo parecido a um resmungo e ele imediatamente desligou pedindo desculpas. Fiz de conta que não entendi e fechei os olhos. Para compensar minha hostilidade deixei-lhe uma boa gorjeta. Agradeceu confuso e quis saber se eu estava bem. Com um sorriso irônico dei-lhe as costas e boa noite ao mesmo tempo.
É impressionante como algumas pessoas totalmente desconhecidas tem essa capacidade de ver através... Desorientada acabo levantando um muro ainda mais espesso.