O sertão tem dessas coisas... Tudo tem o seu lugar. Cada qual é cada qual e promessa é coisa séria. A palavra segue em frente. Falou ta falado.
Falta água, é verdade, mas não falta esperança. Mesmo sendo a terra seca, desnutrida e sem riqueza. Mesmo a fome instalada desde cedo na pessoa, não é culpa nem capricho da senhora natureza.
A culpa é do homem que sequer enxerga longe e de perto só festeja seus mesquinhos interesses de poder e de grandeza.
Exemplos têm aos montes, espalhados com certeza, mas tem uma estória boa onde o acaso rouba o prumo de uma gente condenada a deixar o que possui em troca de uma promessa.
Povoado esquecido pela marcha do progresso, já estava acostumado com o atraso e a calmaria que reinava em seus limites.
Até mesmo a paisagem copiava no horizonte esses traços de dureza e teimosia.
Mandacaru é mais presente e fiel a natureza. Quando frente a quem provoca, mostra toda sua beleza, e até fruto e flor exibe enfeitando o caminho do que vive o que lhe cabe. Mandacaru tem água dentro.
O rio que corre ralo é cuidado e venerado como quando se espera uma dádiva anunciada, sem apuro ou rebeldia. Cada coisa tem seu tempo, e no sertão ninguém tem pressa. Só paciência.
A vida segue hora igual pra todo mundo e o mundo é tão pequeno que o que entra se concentra e o que sai é escolhido. Amor ou covardia, alegria ou tristeza, desejo ou agonia. Não tem nada complicado. E o homem que complica não entende de escolhas.
Simples é um bom começo para um povo que já sabe como vai morrer um dia. Nem mais rico nem mais pobre, nem mais sábio nem mais crente. Porque a vida no sertão, não importa a muita gente.
Vivem bem acomodados em seus lares sem conforto, compartindo os bocados e o que sentem em abundância.
Alguns partem a procura de outra vida lá distante e se enrolam com os fios do seu ninho retirante. Acabam transformando o asilo em nicho errante.
É escolha, é liberdade que se planta no sertão e que cresce sem miradas de inveja ou proteção.
Aos que ficam nada muda, só se acerca à solidão que vai vir antes do fim se instalar naquele chão.
Mas um dia sem aviso, feito chuva de verão, veio gente de outras bandas exibindo a novidade, que vestida para festa, animou o povoado que dormia o mesmo sono sem qualquer alteração.
Muita água ia chegar para aquela região. - O sertão vai virar mar! Repetiam em profusão.
Engenheiros, deputados, arquitetos e comissão. Todos prometiam ao povo uma nova ocasião. Trabalho, água pura, variada plantação, rio de peixes, terra rica, educação.
Parecia um sonho visto desde a alma apaixonada que se entrega totalmente a imagem inventada.
Escutaram pacientes as balelas e as verdades misturadas nas palavras dessa gente competente que depois de tantas voltas ordenou aos residentes a abandonarem suas casas.
Uma barragem nasceria da cidade inundada. Sacrifício exigido desse povo ali presente, pra salvar todo o sertão de um destino inconseqüente.
Tanto choro, desespero, medo da destruição. E o novo que seria? Mais angustia insegurança, e a distância aumentada da lembrança à alusão.
Ameaça, resistência, moradores inconformados formaram mutirão. Mas o povo não tem voz quando a lei é do patrão.
Muita coisa é prometida, outras, pura apelação. E o povo obedece por não ter outra opção.
Uma data foi marcada e teve início a construção da cidade nova que seria um modelo planejado, invejado e copiado no futuro da nação.
O projeto foi estudado, discutido e refeito para dar ao cidadão o que era de direito. Tudo tinha seu lugar. Casas, hortas, escola, igreja, posto médico e comércio. Prefeitura, fórum, ruas, praças, campo de pelada, saneamento completo. Sem faltar nem cemitério. Casa nova para os mortos descansarem desse inferno.
Esqueceram do lugar onde vivem os sentimentos. Baixo água ficariam e um dia escapariam com a força da torrente, pela comporta aberta da barragem, transformando em energia, toda a vida de uma gente.
E o novo que seria? Muita vela e romaria.
Reuniões foram marcadas, reboliço noite e dia. Tanta coisa pra pensar, pra juntar na mala velha e levar pra casa nova como resto de um passado que mais nunca voltaria. Morte certa se sabia e o luto já crescia pelas ruas da cidade que em breve afundaria com as preces e as verdades.
O medo varava a noite encoberta em pesadelos que o povo revivia. Avessos aquela mudança agarravam assustados suas coisas, memórias e fantasias.
O tempo agitou cabeça adentro vestindo de pressa a ação e o entendimento. Para o medo e a insegurança... Não havia mais fermento.
Enquanto se erguia a cidade planejada, a velha ia ficando com a alma abandonada.
Nada mais se produzia e dinheiro pouco entrava. Tudo estava estagnado esperando hora marcada. A angustia coletiva parecia concentrada na tristeza que viria ao findar das amizades e na perda dos seus símbolos de cultura, fé e lealdade.
A igreja onde muitos se casaram, outros tantos já velados, quase todos batizados. O banco da praça onde o beijo foi roubado. A árvore frondosa marcada com lâmina e sangue dos casais enamorados e o coreto onde a banda se exibia a cada ano na festa mais importante ofertada ao padroeiro Santo Antônio.
O velho mercado imundo onde cada terça-feira toda troca se fazia. Carne seca, leite, couro, fumo de corda e farinha.
Carregar não se podia. Muita coisa carece de morrer e findar exatamente onde quer estar. E de respeito se entendia.
Um arquivo foi criado pra salvar tantas memórias e com carinho e cuidado todos foram compartindo suas preciosas estórias.
A dinâmica se instalou e aceitar virou remédio pra reassentar em casa nova, povo, imagem e sentimento. Aceitar não cura nada, mas ao menos se alivia.
Depois de uns três anos, a cidade estava pronta e o rio desviado esperava em calmaria pra voltar aquele leito onde antes ele corria.
A barragem já crescida era mesmo poderosa. Uma montanha de concreto se exibia controlando as águas doces, dando sopa a quem tem fome, espalhando esperança onde todo o sacrifício resultava ainda estranho.
Numa data ensaiada a cidade abriu as portas e era incrível de se ver, o novo de alma exposta pra agarrar tudo o que gosta.
Os primeiros a entrar foram os mortos já chorados em suas novas urnas agora mais apertados. Os mais novos já estavam como antes combinado. Cada vivo que morria era logo enterrado no cemitério novo antes mesmo da cidade ser um sítio habitado.
Reviver a dor da morte de um ente tão querido deixa marcas tão profundas que sequer cabe num dito.
Terminado o leva e traz dos pertences encaixotados, o que ficou pra trás começou ser inundado pelas lágrimas que rolavam dos olhos marejados. Uma página esvaneceu e cada um foi se apossando do novo espaço que era seu. Casa nova e planejada é mais fácil de arrumar. As coisas vão entrando, cada uma em seu lugar.
Era tanta correria que nem mesmo perceberam quando as comportas da barragem foram por fim escancaradas e a água subiu valente pelas ruas da cidade abandonada. Morte lenta já se via, e mais dia menos dia, o rio passaria, levando com ele os destroços sem valia, fincando lá no fundo os restos do que foi já transformado em coragem de seguir vivendo em outro mundo recriado.
Muito tempo já passou e o povo ainda sente a falta que faz na gente um pedaço da vida arrancado de repente.
Transplantar, reassentar, re locar um bem amado, faz sentido quando o plano é salvar do mal cravado. Todo o resto é vaidade, desejo de novidade que pode levar o homem a um destino de inverdade.
Casa Nova é exemplo, de avanço e de instância. Mais que tudo de vitória de um povo acostumado a viver de qualquer água.
Numa coisa eu insisto... Água muita é desperdício quando a terra perde o viço. E o sertão é terra ingrata onde o sol arde e queima quando o homem quer bravata.
Enganar a natureza não é coisa que se faça!
Um açude encantado bordeando a terra seca, nem de longe satisfaz o desejo de riqueza desse povo sertanejo.
O sertão tem dessas coisas...
AL/2008