A equipe


Fazia muito frio quando saí de casa para trabalhar. Estava bem vestida. Com meias de lã, pulôver, cachecol, luvas e um casaco impermeável que herdei da minha mãe. Escutei no rádio que a temperatura chegaria a 2°. Meu corpo sentia muito menos. Quase não consegui caminhar até a parada de ônibus que ficava a cinco quarteirões.
Apressei o passo para ganhar um pouco de calor. Com a respiração ofegante soprava nuvens de vapor enquanto meus olhos lacrimejavam por culpa do açoite de um vento maldoso.
Na rua pessoas caminhavam escondidas debaixo dos agasalhos sem muito interesse umas nas outras.
Entrei no ônibus e procurei um banco bem longe da porta para não receber a corrente de ar gelado. A viagem até o trabalho dura quase duas horas e ao final o ônibus parece mesmo uma lata de conserva. Aperto e profusão de cheiros, cores e espécies.
Cheguei ao edifício como de costume antes dos meus companheiros de trabalho. Ali o frio não entra. As janelas são bem fechadas e um sistema de aquecimento deixa o ambiente com a temperatura constantemente agradável.
Vesti meu uniforme e fui buscar o material de limpeza. Começo sempre pela grande sala que mais parece um amontoado de pequenas jaulas onde paredes baixas fingem separar e proteger as pessoas. Acho que intimidade é uma palavra que não faz nenhum sentido ali. Quem quiser descansar dos olhos e ouvidos alheios, tem de se refugiar nos banheiros ou encontrar uma boa desculpa para sair à rua.
Vivem repetindo que o sucesso de uma grande empresa é alcançado pelo esforço do trabalho em equipe. Melhor nem procurar entender. Essas idéias são muito complicadas para uma simples faxineira.
Terminei rápido de aspirar a pouca poeira, esvaziar as lixeiras, molhar as plantas. Espirrei um pouco de “bom ar”, e segui para a sala da presidência. Sou a única que tem o direito de entrar ali para limpar, mas confesso que não sinto nenhum orgulho desse feito. Sinto mesmo é um medo constante de tocar cada objeto. Faço porque são ordens, e ordens na minha posição só se discute quando não se toma risco.
Essa sala sim tem personalidade. É a cara do presidente. Espaçosa, bonita, elegante, com pouca coisa realmente à mostra. E o que se vê é raro e valioso. Pelo menos é o que dizem, pois também nunca entendi muito bem sobre os valores dos ricos.
Limpei os objetos e os quadros como se deles dependesse a minha vida. Aspirei, tirei o lixo, desinfetei o banheiro, e deixei os vidros das janelas quase invisíveis. Parece um sonho ver a cidade ali de cima. Tudo se vê pequeno e inofensivo. E por uns instantes posso acreditar estar protegida nessa torre alta. Sonho intensamente porque depois, não tenho tempo. O dia passa lento e pesado de afazeres.
Aos poucos todos vão chegando e tomando seus lugares e deveres. Assim como eu que sigo para a cozinha preparando cafés, chás, sucos, e outras esquisitices que me pedem. Difícil de lembrar todas porque os gostos e manias mudam sempre. Acho que para não chamar muita atenção.
Gente estranha essa que trabalha em equipe...
Algumas são simpáticas, me cumprimentam, e até me dão presentes de vez em quando. Eu agradeço, mas às vezes me pergunto se elas realmente pensam em mim quando o compram. Quase sempre são coisas de pouca serventia. Mas a gente se acostuma a isso também. Pra mim, quem dá sem olhar, quer tapear. Na verdade não se deve esperar o contrário de pessoas que se escondem tanto. Acabam vendo muito pouco.
De vez em quando faço um bolo e levo pro pessoal da sala grande. Faço com cuidado e vontade. Claro que tem uns que receiam e nem comem. Todo mundo tem o direito de desconfiar do desconhecido.
Na hora do almoço a maioria aproveita para sair. Uns poucos comem na cozinha a comida que trazem de casa. Outros encomendam em algum restaurante próximo alegando falta de tempo. Realmente dá pena de ver essa gente que até para comer, não para. Nós da limpeza, comemos tranquilamente e quase sempre compartilhamos a comida e outras coisas. Esticar a convivência... Bem, isso já é opção de cada um.
O Presidente chegou tarde hoje. Deve ter tido um motivo muito forte, que eu jamais vou saber, pois normalmente chega cedo e sempre é uns dos últimos a sair. Esse sim parece não ter vida além dessas paredes e sou capaz de apostar que também não tem tempo para sonhar.
Estava muito nervoso e agitado e foi contagiando todo o ambiente. Nessas horas é muito melhor ser apenas uma faxineira. Pedem-te apenas o que está ao teu alcance e não te culpam de nada. Quanto aos que trabalham atrás daquelas meias paredes...
Era um rebuliço de gritos, papeis e telefonemas. Parecia que todos estavam tentando se salvar de uma tempestade no meio do mar. Aquilo devia ser o tal trabalho em equipe que tanto pregam, onde o Um vira um Todo de verdade. Pelo menos na hora do sufoco vi funcionar. Só não entendi se o que faziam era pelo Todo ou pelo o Um mesmo.
No meu bairro a gente costuma fazer mutirão quando, por exemplo, chove muito e o muro de uma casa desaba. Todos se juntam e levantam o muro em poucas horas. Uns emprestam material, outros servem de comer aos que trabalham e por aí vai. Bom, não pretendo comparar uma grande empresa com um pequeno grupo de moradores de um bairro pobre.
Confesso que ao final do dia fiquei admirada. Estavam todos se abraçando, comemorando e rindo. O Presidente até pediu que servíssemos aquela bebida com bolinhas que ele costuma oferecer as visitas importantes. Falou umas coisas bonitas, e brindou ao sucesso da equipe. Pra mim faltou um pouco de emoção...
Depois cada um pôde por fim arrumar seus pertences e sair dali levando um sorriso aliviado na cara. O sorriso do Presidente evidentemente era o mais espontâneo e parecia que ia durar por dias. Pediu-me ainda para preparar-lhe um pequeno lanche, pois pretendia ficar até mais tarde no escritório. Pensei cá com meus botões, que em sua casa não deveria mesmo ter ninguém para comemorar a suada vitória.
Depois me dispensou como de costume repetindo a mesma frase: - Boa noite senhora, obrigado e até amanhã... Olha sempre nos meus olhos quando diz isso, mesmo sem me ver realmente.
Por conta desses acontecimentos perdi minha hora. Levarei quase o dobro do tempo para chegar a casa.
Vesti meus tantos agasalhos e saí apressada esbarrando nas pessoas que cruzava pelo caminho. Tomei o ônibus já abarrotado e viajei o tempo todo de pé e espremida. Os pensamentos vinham em cascata, mas o cansaço era tão grande que logo os levavam tão distante que não saberia onde resgatá-los. Decidi fixar a vista no que passava pela janela para espantar o sono. A cidade assim de perto perde todo o encantamento e o sono me venceu a tal ponto que dormi mesmo de pé. Não sonhei nada. Melhor assim. Os sonhos de olhos abertos são mais bonitos e menos enrolados. Idearei amanhã, enquanto estiver limpando os vidros...

AL/2008