Dentro de algumas horas partirá o trem e eu continuo aqui deitado na grama aparada da praça em frente à estação. Faz muito calor. Tiro a camisa deixando à mostra as tantas tatuagens que fiz. O tigre, o punho fechado, a flor de lótus, um coração com asas. Não me lembro exatamente quando nem por que razão as escolhi. Tão pouco importa. Aliás, pouca coisa importa nesse momento. Nem mesmo as pessoas que passam e olham deixando no ar um “algo” que lhes provoco.
Escuto música no ipod e miro concentrado o céu vasto e luminoso que se esparrama acima da minha cabeça vazia. Nuvens pairam indiferentes enquanto a vida segue outro rumo.
O sol pinta minha pele desbotada e transpiro exalando um cheiro forte de álcool e tabaco, resquícios de uma noite mal dormida.
Descanso a cabeça na mochila estufada. Na pressa, a falta de costume parece ainda mais estúpida. Há muito tempo não sei o que é dobrar roupas e preparar malas. Empurrei mochila adentro o que estava à vista nas prateleiras do minúsculo guarda-roupa compartido com Tereza. O que ficou deixei pra traz como tantas outras coisas. Quem sabe um dia eu volte para buscar ou ela me envia por correio escorregando nos cuidados.
Mensagens entram no celular que vibra no bolso do meu jeans surrado. Não quero lê-las. É tarde demais para trocar palavras sem rima.
Há cinco anos conheci Tereza num cyber café enquanto esperava minha vez para usar o computador. Lia e respondia absorvida uma enxurrada de e-mails. Às vezes deixava escapar um riso alto e aproveitava para dar uma tragada no cigarro que se consumia no cinzeiro de plástico. Tinha os cabelos cacheados amarrados com um cordão de sapatos e um vestido praieiro bem folgado que disfarçava suas formas quase perfeitas. As pernas largas cruzadas na cadeira e as sandálias abandonadas debaixo da mesa. Bebia chá gelado com limão e tinha no pescoço uma borboleta tatuada. Da bolsa semi-aberta brotavam livros, cadernos e apostilas rabiscadas.
Tudo aconteceu muito rápido. Frases trocadas, coincidências óbvias, interesses descobertos e pronto. Lá estávamos nós buscando apartamento para dividir as despesas e a vida naquela cidade estrangeira.
Desde o começo nossas diferenças vinham estampadas, mas a gente parecia se divertir com isso.
Tereza é livre, breve e solta. Decidida, prática, ordenada sem ser obsessiva, e muito criativa. Odeia cozinhar. Meus dons culinários foram decisivos para seduzi-la.
Estuda sociologia ao mesmo tempo em que faz cursos de Yoga e terapias alternativas para manter- se em equilíbrio. Consulta tarô, runas, búzios, horóscopos e tudo que lhe aparece pela frente. Mas diz que é só por curiosidade. Sabe muito bem que as respostas estão todas, dentro dela mesma. E eu finjo acreditar... Para sobreviver, dá aulas particulares de espanhol.
Se Tereza fosse música, seu refrão seria liberdade.
Eu talvez seja o avesso. Penso pouco. Não rasgo tempo. E não me preocupa se a vida traz sentido em cada movimento. Estudo direito e trabalho à noite em um restaurante famoso como ajudante de cozinheiro. Sou criativo mas pouco prático. A desordem que faço não é nada diante da que sinto adentro, mas vivo muito bem com as duas.
Liberdade pra mim é uma palavra extremamente bonita que combina melhor com os animais. Eu gosto mesmo é de estar agarrado às minhas coisas, aos meus amigos e aos que amo. Gosto de companhia, de compartir. Estar sozinho é entediante, triste e improdutivo. Por isso colei em Tereza.
Arrisco mesmo a dizer que a gente se divertiu muito. Até mesmo quando a convivência diária parecia um velho disco arranhado.
Quando fui apresentado à sua família, gostei muito daquele estilo cuidado tribal que tinham e que à Tereza tanto lhe sufocava.
Minha família por outro lado, segue ainda o modelo colcha de retalhos. Unidos por partes que nos sobram.
Famílias à parte dão lugar a amadurecimento. No exílio, separação não sugere abandono e distância passa a ser a maior aliada dos vínculos.
Depois de três anos juntos, Tereza começou a falar em ter filhos. Primeiro em tom de brincadeira, depois com insistência. Fui vago. Não dizia nem sim nem não. Simplesmente empurrava o assunto pra debaixo do tapete. Até que um dia, Tereza engravidou, por descuido, disse ela, mas eu não acreditei. Senti-me traído, ignorado e estúpido.
Ela sentiu-se muito pior, acredito. E sei que nunca me perdoou quando teve de fazer o aborto. Daquela vez escolhera a mim.
Seguimos nossa vida como se nada tivesse acontecido, mas esse nada foi crescendo como um monstro nas profundezas.
Cicatrizes mal curadas revolvem e terminam instalando uma distância inexplicável.
Busquei aventuras, vícios acompanhados, ausências torturantes, solidão amedrontada.
Tereza endureceu assim que entendeu o jogo infantil onde eu sempre vencia roubando os resultados. Iludido eu segui e já nem sabia quem era Tereza.
Ontem o monstro saiu desatinado de dentro de mim. Gritou, soltou fogo, destruiu e quase matou Tereza e o outro filho gerado enquanto eu jogava.
Tereza venceu e dessa vez não fui o escolhido. Salvou a cria.
E eu...
Parece que me fui.
AL/2008
Escuto música no ipod e miro concentrado o céu vasto e luminoso que se esparrama acima da minha cabeça vazia. Nuvens pairam indiferentes enquanto a vida segue outro rumo.
O sol pinta minha pele desbotada e transpiro exalando um cheiro forte de álcool e tabaco, resquícios de uma noite mal dormida.
Descanso a cabeça na mochila estufada. Na pressa, a falta de costume parece ainda mais estúpida. Há muito tempo não sei o que é dobrar roupas e preparar malas. Empurrei mochila adentro o que estava à vista nas prateleiras do minúsculo guarda-roupa compartido com Tereza. O que ficou deixei pra traz como tantas outras coisas. Quem sabe um dia eu volte para buscar ou ela me envia por correio escorregando nos cuidados.
Mensagens entram no celular que vibra no bolso do meu jeans surrado. Não quero lê-las. É tarde demais para trocar palavras sem rima.
Há cinco anos conheci Tereza num cyber café enquanto esperava minha vez para usar o computador. Lia e respondia absorvida uma enxurrada de e-mails. Às vezes deixava escapar um riso alto e aproveitava para dar uma tragada no cigarro que se consumia no cinzeiro de plástico. Tinha os cabelos cacheados amarrados com um cordão de sapatos e um vestido praieiro bem folgado que disfarçava suas formas quase perfeitas. As pernas largas cruzadas na cadeira e as sandálias abandonadas debaixo da mesa. Bebia chá gelado com limão e tinha no pescoço uma borboleta tatuada. Da bolsa semi-aberta brotavam livros, cadernos e apostilas rabiscadas.
Tudo aconteceu muito rápido. Frases trocadas, coincidências óbvias, interesses descobertos e pronto. Lá estávamos nós buscando apartamento para dividir as despesas e a vida naquela cidade estrangeira.
Desde o começo nossas diferenças vinham estampadas, mas a gente parecia se divertir com isso.
Tereza é livre, breve e solta. Decidida, prática, ordenada sem ser obsessiva, e muito criativa. Odeia cozinhar. Meus dons culinários foram decisivos para seduzi-la.
Estuda sociologia ao mesmo tempo em que faz cursos de Yoga e terapias alternativas para manter- se em equilíbrio. Consulta tarô, runas, búzios, horóscopos e tudo que lhe aparece pela frente. Mas diz que é só por curiosidade. Sabe muito bem que as respostas estão todas, dentro dela mesma. E eu finjo acreditar... Para sobreviver, dá aulas particulares de espanhol.
Se Tereza fosse música, seu refrão seria liberdade.
Eu talvez seja o avesso. Penso pouco. Não rasgo tempo. E não me preocupa se a vida traz sentido em cada movimento. Estudo direito e trabalho à noite em um restaurante famoso como ajudante de cozinheiro. Sou criativo mas pouco prático. A desordem que faço não é nada diante da que sinto adentro, mas vivo muito bem com as duas.
Liberdade pra mim é uma palavra extremamente bonita que combina melhor com os animais. Eu gosto mesmo é de estar agarrado às minhas coisas, aos meus amigos e aos que amo. Gosto de companhia, de compartir. Estar sozinho é entediante, triste e improdutivo. Por isso colei em Tereza.
Arrisco mesmo a dizer que a gente se divertiu muito. Até mesmo quando a convivência diária parecia um velho disco arranhado.
Quando fui apresentado à sua família, gostei muito daquele estilo cuidado tribal que tinham e que à Tereza tanto lhe sufocava.
Minha família por outro lado, segue ainda o modelo colcha de retalhos. Unidos por partes que nos sobram.
Famílias à parte dão lugar a amadurecimento. No exílio, separação não sugere abandono e distância passa a ser a maior aliada dos vínculos.
Depois de três anos juntos, Tereza começou a falar em ter filhos. Primeiro em tom de brincadeira, depois com insistência. Fui vago. Não dizia nem sim nem não. Simplesmente empurrava o assunto pra debaixo do tapete. Até que um dia, Tereza engravidou, por descuido, disse ela, mas eu não acreditei. Senti-me traído, ignorado e estúpido.
Ela sentiu-se muito pior, acredito. E sei que nunca me perdoou quando teve de fazer o aborto. Daquela vez escolhera a mim.
Seguimos nossa vida como se nada tivesse acontecido, mas esse nada foi crescendo como um monstro nas profundezas.
Cicatrizes mal curadas revolvem e terminam instalando uma distância inexplicável.
Busquei aventuras, vícios acompanhados, ausências torturantes, solidão amedrontada.
Tereza endureceu assim que entendeu o jogo infantil onde eu sempre vencia roubando os resultados. Iludido eu segui e já nem sabia quem era Tereza.
Ontem o monstro saiu desatinado de dentro de mim. Gritou, soltou fogo, destruiu e quase matou Tereza e o outro filho gerado enquanto eu jogava.
Tereza venceu e dessa vez não fui o escolhido. Salvou a cria.
E eu...
Parece que me fui.
AL/2008